2013-09-18

Eu e elas

Quando rompi com CC, a relação já tinha muitos anos, estávamos unidos desde a minha primeira infância. Meus pais dizem que gostei dela desde o início: adoração completa, uma sede de quero mais. Nessa inseparabilidade, estivemos juntos até meu último ano na universidade. Talvez alguns casamentos durem mais que isso, mas e daí? Para mim, foi uma eternidade. Sempre achei que nunca iria desistir dela, que ela me acompanharia onde eu estivesse, em qualquer situação.

O rompimento não foi brusco nem bem delimitado temporalmente. Talvez porque nenhum acontecimento extraordinário tenha precipitado o fim. Também não houve um fim antecipadamente anunciado. Nem drama intenso, nem sofrimento prolongado. Lembro que não era falta de desejo. Aconteceu que me dei conta de que a relação não seria eterna, não teria nem um longo prazo. Estava entrando em um novo ciclo de vida e ela precisava ficar para trás. Tentei não pensar demais no fim, não avaliar prós e contras. Ainda que o vínculo fosse antigo, o resto da minha vida era mais importante. Iria acabar, precisava acabar.

Nos primeiros dias, a falta dela era visível. Precisei de um autocontrole que nunca tinha praticado. Tragicamente, o autocontrole faltava por culpa dela, que estava sempre ao meu lado e era também minha fonte principal de autocontrole. Sinuca de bico, catch 22, tudo indicava que nosso rompimento não aconteceria. Muitos amigos disseram que eu não conseguiria, que meu apego a ela era forte demais. Minha fraqueza por CC sempre foi ululante e assumida.

A solução foi trocá-la por uma mais nova. Uma prima mais nova de CC! Por tradição familiar ainda tinham o primeiro mesmo nome: meu futuro seria com CZ. Talvez tenham dito que eu era insano, fora da casinha mesmo. Para mim era natural. Se fosse um matemático, desenvolveria uma lógica para me justificar. A semelhança física entre CC e CZ ajudou. A cintura fina de CZ fez um mundo de diferença. A novidade e a beleza exótica fecharam o pacote. Era um rompimento, mas sem vandalismo.

Os clichês foram inevitáveis. Tive recaídas com a ex e senti uma culpa cristã que nunca tive. Não eram diárias e eu tentava me justificar. Culpei os dias de calor, quando CC aparecia onde eu estivesse com suas curvas e toda de vermelho: única e inebriante. Cintura fina e corpo de modelo eram uma delícia também, mas as curvas de CC tiram muita gente do sério. Era penoso tentar ser a exceção. CC sabia da prima, que também sabia do desejo que CC me despertava. CC sabia que hábitos antigos são difíceis de superar e, na sua autoconfiança inabalável, sabia que eu vacilaria de vez em quando. A prima CZ, ainda que pudesse estar insegura, sabia do meu comprometimento com a mudança. Mas sabia também que, por ser mais nova em minha vida, eu iria precisar de um tempo até me sentir conquistado. 

Pensei até em ter o melhor dos dois mundos. Às vezes as curvas e a intensidade de CC, em outras, o corpo ideal de CZ e uma suavidade que me fazia querer sempre mais. Mas eu sabia que seria uma atitude covarde, uma infidelidade que teria de justificar socialmente a todo momento. A ex precisava ficar na memória, eu precisava chegar a um estado que não cedesse ao desejo, que não precisasse nem resistir. Em mais uma estratégia para me afastar de CC, conheci outras. Experimentei bastante, repetidamente com algumas até. Talvez uma terceira que não fosse relacionada às duas primas me ajudasse a superar a ex. Algumas tinham as curvas de CC, outras aproximavam o ideal de magreza de CZ, mas nenhuma me despertava um desejo que eu sentisse ser duradouro. Foram passatempos.

A mudança aconteceu. Em alguns meses, já estava completamente habituado e desejando intensamente CZ. Mesmo nos dias quentes, ela já ficava deliciosa em seu pretinho básico. A ausência de curvas era uma saudade, mas dessas que não dura mais que dois segundos e meio. Não era que eu já me considerava um entusiasta das retas, mas na minha nova vida era mandatório que eu estivesse longe de CC para ser mais saudável. As curvas haviam ficado no retrovisor, as retas se estendiam no limite do horizonte.

A relação com CZ já dura muitos anos. Já é sólida, íntima e ainda com aquele gosto de que nunca irá acabar. Objetivamente sei que é uma improbabilidade, mas nem penso em alternativas. Ainda assim, sou humano e às vezes preciso de YOLO (You Only Live Once). Não são encontros planejados, nem me causam mais culpa. Nos piores dias do verão, os encontros ocasionais com CC, sempre de vermelho, refrescam a minha memória e meu desejo. Com CC, sempre ao meu alcance, revivo o passado de prazeres. Agora, o que era uma dificuldade em abandonar o passado tornou-se o eventual delicioso, exótico e não planejado. A eternidade não era possível com CC, mas minha vida com CZ ainda é as good as it gets

Quase hora do almoço e já começo a pensar no encontro habitual com CZ. É um dia mais frio que o normal e a lembrança de CC não deveria ter retornado. Mas não quero que a excepcionalidade seja previsível. Hoje vai ser Coca Cola, não Coca Zero.

2013-07-03

Mudança? Não para nós.

"Há uma quantidade infinita de esperança no universo... mas não para nós" - Franz Kafka

Estive em silêncio essas semanas enquanto o Brasil saía às ruas. Os motivos eu só tenho post hoc: não gostar de fazer previsões sem dados, não ter participado diretamente das manifestações (tenho alergia a vinagre), não ser uma luta particular minha (pode me chamar de egoísta). Inicialmente tive a impressão de que alguma coisa pudesse mudar ou uma mudança forçada talvez pudesse acontecer. Uma vaga esperança, mesmo com meu pessimismo persistente.

Mas hoje despertei após uma noite de sonhos inquietantes sentindo as costas tão duras que pareciam revestidas de metal. Abri uma página de notícias na internet e a realidade me jogou na cara que mandaram cancelar a esperança. Mesmo com todas as manifestações populares, o presidente da câmara dos deputados, o terceiro na sucessão presidencial, esfrega na cara do contribuinte que não está nem aí para moralidade, para o uso responsável do dinheiro público e usa um jato da Força Aérea Brasileira para ir de Natal ao Rio de Janeiro com família e amigos assistir à final da Copa da Confederações 2013. 

Após a denúncia da imprensa, e unicamente porque a farra se tornou pública, o deputado Henrique Alves declara que irá ressarcir o contribuinte com o valor das passagens. Posso imaginar como será a devolução: pelo preço da passagem promocional mais barata entre Natal e Rio de Janeiro em baixa temporada e paga com muita antecedência. Ou alguém imagina que será o custo de deslocamento do jato para Natal depois Rio, de volta a Natal e de volta para onde o jato estava, já incluindo o salário do piloto e tripulação. Henrique Alves tenta ainda justificar a viagem como se fosse para uma suposta reunião de trabalho no Rio de Janeiro no sábado. Na mais surpreendente das coincidências, a reunião aconteceu na véspera do jogo que foi assistir. Como já ia mesmo, uma carona não pareceu ser um problema.

Essencialmente, Henrique Alves está colocando cada contribuinte de quatro e metendo sem lubrificante. Está mostrando pra quem quiser que o Brasil do privilégio, do "manda quem pode, obedece quem tem juízo" continua sem qualquer tentativa de acobertamento. Não houve equívoco ou descuido. Não foi erro inocente. Houve claro e deliberado planejamento para usufruir do dinheiro público para seu prazer pessoal. Foi a resposta do presidente do congresso às manifestações. Com a crueldade adicional da exibição pública, por seus amigos e familiares, de fotos em redes sociais exibindo publicamente a felicidade de estar assistindo ao jogo sem pagar a passagem.

Cidadão brasileiro esperando a sua vez.

Se alguma punição ao deputado irá acontecer eu não sei, mas poucos acreditam que vai. O deputado Henrique Alves só o fez porque sabia que nada aconteceria. Sabia que não teria seu pedido negado ou questionado. Estava plenamente consciente do ato, do seu poder de pedir e ser atendido no mais absurdo dos pedidos. Quem recebeu o pedido não o contestou. Quem atendeu ao pedido não contestou. Quem pilotou o avião e viu família e amigos do deputado entrando obedeceu as ordens cegamente. Nenhum dos funcionários que souberam do fato denunciou publicamente o acontecimento.

Num mundo ideal, o deputado seria forçado a renunciar da presidência e de seu mandato (por vontade própria, nem no mundo ideal) e sua carreira política viraria história a ser esquecida. Mas sou pragmático e vou dar algumas sugestões, ainda que utópicas:

1 - O povo sair às ruas e pedir a renúncia de Henrique Alves. Entendo se não rolar porque os manifestantes já estão cansados. Mas poderia ser uma renovação de pauta.

2 - A presidenta pedir a renúncia de Henrique Alves. "Aí seria interferência do Executivo no Legislativo!", gritariam os puristas. Mas o Executivo já controla o legislativo e seria por um bem maior. Como provavelmente um pedido não daria certo, teria de ser uma chantagem do tipo "o mandato ou os cargos ocupados pelo PMDB até o milésimo escalão do Executivo Federal".

3 - Os outros deputados abrirem processo de cassação contra Henrique Alves. O governo teria de dar algum apoio e poderia ser uma boa oportunidade da presidenta ganhar popularidade. 

Todas são possibilidades teóricas. O que desanima é que será necessário um suplente assumir a vaga e um novo presidente do congresso ser eleito. A sensação de que o ciclo continua é inevitável. Idéias como guilhotina vêm à cabeça (não resisti). Reforma política com aplicação só em 2016 deixa qualquer um sem esperança. Fazer o quê, então?

É preciso concentrar esforços. Sonhar que um dia teremos uma população educada o suficiente para achar que obedecer quem é indicado/eleito é completamente irracional. Sonhar com um dia em que representação política não será uma profissão com aposentadoria especial, mas apenas a dedicação temporária de um cidadão para representar outros pelo bem comum.

A educação no Brasil está melhorando e deve continuar a melhorar. Mas vai demorar. Duas gerações, meio século, por baixo. Já o modo de representação política pode mudar quase instantaneamente. É preciso tirar o dinheiro da política. Possibilitar que o cidadão não-milionário e não vendido possa ser eleito. Financiar as campanhas políticas exclusivamente com o dinheiro público. Vai custar um bilhão? Dez bilhões? É uma conta muito mais barata para o contribuinte que ter representantes corruptos fantoches de empresas e do 1% mais rico.

Se não der certo, o Brasil tem aço suficiente pra muita guilhotina.

2013-06-12

Dilma Roussef e o estilo de gerência da burocracia brasileira

Matéria bonitinha (e ordinária) da Folha de São Paulo fala das visitas da presidenta Dilma Roussef à cabine do avião da presidência da república. Segundo a reportagem, a presidenta, por não gostar de turbulência em seus vôos, palpita sobre a rota do avião, quer saber sobre os instrumentos, cartas meteorológicas, formato das nuvens e tudo mais. E quando, ainda assim, o vôo tem alguma turbulência, aciona um botão para avisar ao comandante do vôo que não gostou do sacolejo: uma bronca eletrônica. No fim, até o comandante, o tenentente-brigadeiro-do-ar Francisco Joseli Parente Camelo, ri (amareladamente?) das exigências da presidenta. Como não rir? Ela é mandona mesmo, é o estilo dela, né?

Um observador externo, e que desconhecesse a burocracia brasileira e sua história, poderia pensar que o comportamento da presidenta é uma excentricidade, um caso isolado, um traço de personalidade. Espantosamente, uma jornalista que comenta sobre política no Brasil dá o mesmo tratamento de exceção. A única diferença é que a jornalista, para não perder a sua viagem, lembra que as viagens da presidenta custam mais para o contribuinte. Mas essa ressalva ao comportamento provavelmente nem vai gerar indignações ou uma resposta da presidência da república. Nem mesmo eu vou dar qualquer pelota para o gasto maior. Talvez até conseguisse defender a presidenta se ganhasse para isso. O mais relevante no comportamento supostamente atípico da presidenta é o que ele representa, o que ele exemplifica.

Para entender o que o comportamento exótico da presidenta, mas aceitável, representa, vamos continuar com a perspectiva do observador externo. O piloto do avião é um oficial de carreira da aeronáutica e no topo da hierarquia meritória (ou quase lá). É um piloto experiente a quem se confia a integridade física da presidenta, ministros, secretários de estado, assessores (o próprio piloto tem o cargo de secretário de estado). Seu treinamento e carreira custou milhões de reais ao contribuinte. Possui os requisitos de competência, experiência e responsabilidade para o cargo. Ainda assim, ele é micro-gerenciado por uma chefe sabichona e tratado, essencialmente, como o estagiário que vira o bode expiatório quando qualquer problema besta acontece (a turbulência).

Já a presidenta sabichona que não gosta de ser contrariada e, justificada por um suposto estilo pessoal (se ela não tivesse um cargo seria "gênio difícil"), prefere desconsiderar todas as qualificações do comandante do avião oficial porque "não gosta de turbulência". Não é suficiente ter pedido uma ou duas vezes que ele, por favor, tentasse evitar turbulências. É necessário verificar pessoalmente o que ele está fazendo para evitar turbulências. Alternativas como deixar pra lá a turbulência, como ela fazia quando não usava avião oficial, não são mais uma possibilidade. Que tal um calmante para relaxar ou fazer uma terapia para superar o medo de turbulência? Sem chance. Mais fácil mandar porque pode mandar, independente de conhecimento técnico, do ônus para o contribuinte, da qualificação do piloto. E como o cargo do piloto não depende só de qualificações, é fácil arranjar outro que queira ter um salário que supera o da presidenta. O capricho de não arriscar que o suco de laranja respingue no terninho é o que importa. Objetivamente, o observador externo só poderia concluir que a situação é alucinatória. Um Machado de Assis ou um Jorge Luis Borges conseguiriam extrair um bom conto sem precisar exagerar.

Mas no contexto da burocracia brasileira, o que parece surreal torna-se banal. Ainda que seja, talvez, um traço de personalidade de Dilma Roussef, seu comportamento autoritário só é possível porque comportamentos similares sempre foram aceitos, tolerados e comuns desde muito antes de Dilma se tornar presidenta. Se os modelos e práticas profissionais ao seu redor mostram que é possível, e talvez até mais efetivo, ser autoritária, por que se reprimir? Por que mudar? Para quê considerar, respeitar a competência do outro? Mais fácil exigir que seja sempre do meu jeito, sem contestação. De quebra ainda dá uma publicidade gratuita para o governo.

Transparência pública, accountability, gestão para resultados, meritocracia. Tudo gracinha e super-duper moderno. Dá a aparência que o o Estado brasileiro está mais profissional. Talvez o contribuinte até acredite. Mas nas relações de trabalho, o que acontece, e que se espera que aconteça, é secretária servir café e marcar consulta médica particular, motorista levar esposa de juiz ao shopping com carro do tribunal, secretário de estado usar carro oficial para ir à academia, juiz morar em apartamento funcional de mais de 400 metros quadrados. O que importa, que dá resultado, são os favores prestados e cobrados, os privilégios do cargo. A hierarquia, mesmo entre os servidores civis, ainda é vista como uma relação entre patrão e empregado, não como de colaboradores com diferentes responsabilidades e que trabalham pelo bem público. Um ditado idiótico, e repetida ad nauseam na administração pública brasileira, sintetiza essa tradição: "Manda quem pode, obedece quem tem juízo".

Imagino que tipo de revolução precisará ocorrer no Brasil para que as relações de poder não sejam abusivas. No meu idealismo, sonho com uma revolução da massa dos servidores públicos que não mais aceitam a hierarquia tradicional, as arbitrariedades, o sistema da troca de favor, do jeitinho para o amigo do rei. Uma Revolução pacífica com as armas substituídas por carimbos (tinta vermelha?).

Mas a realidade é que a arma do status quo para se manter é muito mais poderosa: dinheiro. Há cargos comissionados o bastante na administração federal para comprar cumplicidade: seja para os que ocupam os cargos, sejam para aqueles que desejam ocupar os cargos. O dinheiro, mesmo temporário, compra idealismo, compra vontade de mudança, compra silêncio.

E nunca muda? Talvez mude. Devagar. Por pressões externas, por atos isolados e até mudança cultural. Mas a vida é curta e imprevisível. Esperar cansa, é tedioso.

Então eu esperneio, discordo e critico. Lembro que estar vivo é uma improbabilidade estatística. Que o improvável também acontece*. E tentar mudar pode ser divertido, ainda que desajuizado.

Meu cabelo tá quase lá!

* Não me interpretem como um defensor da loteria. Só jogue na mega-sena se você deseja pagar mais imposto.

2013-05-07

Virou moda: mais missas/cultos em repartição pública

a mãe parece meio zangada...


As manchas deixadas pela água benta da missa da CAPES do dia 16/04 acabam de sair e já estão programados mais dois eventos religiosos: uma missa no dia 9 de maio e um encontro do grupo de orações no dia 7 de maio. Ambos em auditórios do edifício onde a CAPES funciona. Ambos com autorização dos responsáveis pelo espaço (assumo que existe permissão porque houve divulgação ampla).

Se é de causar indignação que os eventos aconteçam, infelizmente, não há surpresa. A onda conservadora/religiosa no Brasil é pervasiva e servidores públicos não seriam exceções. Os eventos dentro do local de trabalho são uma conseqüência provável e com precedentes. Se (quase) todo mundo é religioso, se a religião é vista como algo positivo, por que limitar a religião aos espaços fora do trabalho? A quem prejudicaria, afinal?

desculpa da vez: se é pela mães, então pode.


Aparentemente a resposta não é óbvia para os que promovem as missas, então é necessário educá-los minimamente. A separação entre igreja e estado, o estado laico, é uma conquista cultural relativamente recente na história humana e ainda não é universal (vide estados islâmicos). Nos Estados Unidos e Europa, essa separação começou a se tornar regra no final do século 18 e se consolidou no século 19. No Brasil, só surgiu com a constituição de 1881. A idéia é que o estado seja neutro em relação à religião e qualquer cidadão pratique sua religião, ou não pratique qualquer religião, sem interferência do estado. Além de ser uma ampliação das liberdades individuais, o estado laico serviu e serve para proteger minorias de perseguição religiosa. Para que isso aconteça, o estado não apóia ou dificulta qualquer religião e nem a ausência de religião. Religião simplesmente não é assunto do estado (e sem tercerização). Nisso, religião é como sexo: qualquer tara/rito vale, desde que haja consenso e os direitos do outro sejam respeitados. Com a vantagem de que religião pode rolar ao ar livre. Como ser contra esse princípio?

Explicitamente, ninguém é contra o estado laico no Brasil. Ninguém parece querer que as regras divinas se apliquem como leis civis. Desejar a mulher do vizinho pode ser pecado, mas (graças a deus?) não dá cadeia. Apesar desse laicismo para as coisas boas da vida, é fato que religiosos tendem a achar que sua seita é melhor que as outras. Até aceitam a existência da diversidade, mas o outro sempre está errado, na essência ou nos detalhes. Daí não é difícil entender porque querem que seu gosto de crença alcance o maior número possível de pessoas e uma forma eficiente de espalhar uma crença é torná-la oficial. Como a oficialização não é mais possível, ou a vizinha e o divóricio não seriam possíveis, poder contar a grana extra do contribuinte ajuda. Quem tem o poder de se fazer cumprir a separação entre estado igreja geralmente prefere se abster a ser censurado socialmente ("Como você pode ser contra a palavra de JC?") e acaba de convencendo que não há nada errado.

Quase que obviamente, essa ganância de beneficiar uma seita mais que outras é uma atitude míope. Tem sorte aquele está incluído no grupo favorecido, mas não há garantias de que esse favorecimento seja eterno. Evitar o enfraquecimento do estado laico não atende apenas o interesse de ateus e secularistas, mas também o de religiosos. A separação entre estado e religião tenta assegurar que a liberdade de praticar qualquer religião continue existindo independente de caprichos de governantes ou de desejos da maioria. Tenta assegurar que qualquer um adore ou ignore a sua versão de papai noel para adultos sem ser incomodado ou discriminado. Possibilita que o religioso tenha o direito de se achar absolutamente certo e não ser contrariado.

2013-05-02

Missa em repartição pública pode, Arnaldo?

Advinha se mandaram pra mim?


É correto realizar uma missa católica dentro de uma repartição pública? E dentro de uma repatição pública com não-católicos e ateus? E dentro de uma repatição pública com não-católicos e ateus num estado laico?

Encontro dois tipos de resposta predominantes à uma pergunta que deveria ser retórica: 1) Não; e 2) Mas qual o mal? É só uma missa... A resposta 2 é, na verdade, uma desculpa. Uma admissão de culpa e uma relativização do problema: "Pode não ser certo, mas qual o problema?" Felizmente, não precisamos considerar nenhuma das duas respostas. No Brasil, a resposta vai além do certo, ou "que mal tem":

"Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;"- Constituição Federal de 1988

É um artigo obscuro da constituição brasileira, admito, mas a parte que importa é a da subvenção, i.e., a ajuda financeira do governo. O dinheiro não foi dado na mão do padre, mas o local, ar condicionado, iluminação (talvez até café) foram fornecidos com o orçamento da união. Sendo o evento uma missa, a exceção do interesse público não existe. O interesse foi do padre e dos católicos que assistiram à missa. Ainda que tenha havido pagamento, um órgão público da área de educação não deveria estar no ramo de aluguel de espaço para eventos.

A missa aconteceu e ninguém deu pelota. Quem ousou se indignar foi silenciado pelos idiotas-do-deixa-disso: "Que bobagem, é só uma missa. As pessoas gostam." Quem não acreditou que o princípio do estado laico fosse ignorado por dirigentes públicos de gordas gratificações, passou por idiota. Quem sonhou que trabalhar numa repartição pública o protegeria de louvações à moralidade cristã no ambiente de trabalho, acordou gritando do pesadelo.

Mas o que esperar de uma religião dominante? Respeito à constituição? Respeito ao dinheiro do contribuinte? Respeito ao estado laico? Respeito ao próximo? Religião, como sempre, ganha passe livre no dever de respeitar (ou de pagar impostos).

E ainda deixa claro o que deseja para os que não obedecem cegamente à palavra de JC:


"Ele punirá os que não conhecem a Deus e os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus.
Eles sofrerão a pena de destruição eterna, a separação da presença do Senhor e da majestade do seu poder." -- 2 Tessalonicenses 1:8-9 (não, não é o velho testamento)

2013-04-15

As ruas têm cheiro de gasolina e óleo diesel

Do tempo em que engarrafamento era notícia.

"Acho lindo um engarrafamento!", é a declaração de Graça Foster, presidente da Petrobras, que promete indignar parte da imprensa esta semana. A entrevista era sobre a Petrobras e assuntos relacionados, mas como perder uma manchete que pode gerar uma pseudo-polêmica? O contexto? Enterra lá no final da matéria.

Se Foster adora um engarrafamento porque é sinal que a Petrobras está indo bem, eu adoro porque é um dos sinais visíveis que o Brasil mudou. Se para Foster o engarrafamento é o lucro da Petrobras, para mim é a menor desigualdade social. Com mais renda disponível, inflação baixa e juros pagáveis, ainda que altos, quem pôde fez o esforço e parou de andar de ônibus. Mesmo sem ar condicionado, vidro elétrico ou direção hidráulica, o carro próprio supera o ônibus abarrotado, lento, perigoso. Mesmo com o custo alto da gasolina, do seguro, dos impostos, o carro se tornou uma possibilidade. O desejo pôde ser saciado. Trânsito lento iria fazer alguém voltar a andar de ônibus? Sem chance. Foda-se o trânsito.

Os ricos e a ex-classe média reclamaram pelo canto da boca dos carros financiados em 72 meses, mas tiveram de engolir o engarrafamento realmente democratizado. Podem zombar dos carros populares sem potência para arrancar e fazer o barulho dos carros caros, mas quem precisa de potência no engarrafamento de 20 km/h? SUVs fálicas ou Corsas 1.0 compartilham o mesmo espaço e estão sujeitos às mesmas leis. O engarrafamento no Brasil tornou-se o maior nivelador social do espaço urbano.

O mercado fez o que foi possível para livrar a classe alta e média alta da invasão social: bairro diferenciado, agência de banco diferenciada, supermercado diferenciado, shopping diferenciado, sala de cinema diferenciada, plano de saúde diferenciado, seguro de carro diferenciado, escola diferenciada. Mas o trânsito é indiferente à classe social: égalité na marra.

Seria uma justiça social cruel? Afinal, a nova classe média também sofre com a situação. Mais até, quando não há ar condicionado. Poderia haver uma solução boa para todos? "Transporte público decente?", suspiram os idealistas. Talvez, mas de que adianta discutir o que, no Brasil, não vai acontecer? Seja ônibus, metrô, trem urbano, bicicleta, nenhum governo dá qualquer pelota para o transporte público ou alternativo. Seria uma discussão fútil. Talvez só seja possível quando for desfeita a estabelecida e perversa relação "público -> para pobre/ruim". Trabalho para mais de uma geração. Mais realista é torcer/lutar para que não adotem no Brasil o engarrafamento diferenciado. "Estou só esperando o que vai acontecer..."

2013-04-08

Rapidinha: sonhar ou perder?

Hoje assisti a uma palestra sobre gestão ontológica (quando googlei, a sugestão foi "questão ontológica"). Falou-se das organizações, de indivíduos, de clientes, de competências, de compromissos. Teve até filme  no estilo Khan Academy. Entre tantas perguntas retóricas e afirmações motivadoras, uma me incomodou: "Você pode ser o que quiser, se esse for o seu sonho." Provavelmente numa forma mais articulada, mas em essência foi isso.

Sobre a parte de "poder ser o que você quiser", deixo o assunto para outro dia. Livre arbítrio é um dos meus tópicos favoritos, mas merece mais trabalho. O que me interessou hoje foi a parte do sonho, objetivo de vida. O famoso "o que você quer ser quando crescer" vitaminado. Aquilo que você vai usar como justificativa das suas escolhas profissionais e pessoais. Pessoalmente, fico geralmente contemplativo quando alguém me conta esse tipo de sonho, mas hoje, no contexto da palestra, me perguntei: "Se é para sonhar, por que alguém sonharia menos que o máximo possível?"

Se você sonha em ser um político, seu sonho deve ser o de alcançar o cargo máximo de um político no seu país: presidente ou primeiro ministro (ditador para os sociopatas). Se você quer ser cientista, é ganhar um Nobel. Ou três, já que teve gente que ganhou dois. Se quer ser rico, qual seria o limite? O mais rico do planeta? Por quê iria querer parar em cinco bilhões de dólares?

Como exercício, vamos pensar no que aconteceria se as pessoas sempre sonhassem alto e agissem de acordo com esse sonho. Que tal um milhão de empreendedores que só tenham o objetivo de ser o mais rico entre todos? As práticas empresariais deles seriam honestas e éticas? Ou todos os cientistas querendo apenas múltiplos prêmios Nobel. Será que iriam querer dar uma única aula na vida? Milhares de políticos querendo o cargo máximo do executivo é indecente demais para descrever.

Obviamente nem todo mundo sonha ou sonha no máximo e o objetivo dos coachs e motivadores é fazer você se sentir especial por sonhar alto. Se os outros não sonham tão alto, azar deles. Depois é só fazer parecer com que tudo dependa só de você, da sua vontade, das suas ações. Fatores externos podem ser excluídos, contexto sócio-histórico é desculpa. Se não der certo, foi você que não fez ou quis o bastante (não teve fé?). Se você ajusta seus sonhos à sua realidade, ou não pensa obsessivamente no futuro que provavelmente não vai acontecer, você se torna um conformado, um perdedor. E todo fracasso será culpa exclusivamente sua.

Antes perdedor que cruel.


2013-04-06

Coda: ressaqueado de ortografia

São erros primários. Esses erros mostram que o aluno não sabe escrever direito.


Eu sou um reducionista totalmente fora do armário, mas o reducionismo pra valer a pena precisa ser motivado. Reduz-se para o essencial, o mais importante, o que explica e prediz mais. Mas reduzir a escrita à ortografia é, no mínimo, preguiça (mas costuma ser desonestidade intelectual). É também o que se chama popularmente de julgar o livro pela capa, quem vê cara não vê coração, as aparências enganam. Para estes preguiçosos/indecentes, todas as habilidades necessárias para redigir um texto como capacidade de traduzir idéias, organizá-las, redigir um texto coeso, coerente e eficaz são ignoradas se um erro é encontrado. Se o erro de ortografia emerge, toda a qualidade da escrita parece ir por água abaixo:

"Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de reçaca? Vá, de reçaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de reçaca."
- Dom Casmurro de Machado de Assis. Versão pré-revisão. Talvez.

"O grande Joaquim Maria Machado de Assis JAMAIS cometeria tal barbaridade" - diriam os obcecados pela correção ortográfica. Mas se Machado escrevia sem erros de ortografia ou tinha bons revisores é irrelevante. A troca de 'ç' por 'ss' é possível e comum. Na palavra "ressaca", a troca não alteraria em absolutamente nada a qualidade literária do texto. A metáfora seria a mesma, o romance seria o mesmo. Na verdade, se o texto original tivesse sido impresso com "ç", talvez 'reçaca' fosse uma forma aceitável hoje. Se Machado de Assis usou, por que eu, escrivinhador de final de semana, não poderia usar?


Mas Machado seguiu o padrão ortográfico da época. Como hoje qualquer escritor, jornalista ou operador de mídia social continua fazendo. Com raros desvios e com a vantagem da revisão via software. Mas ainda há estilo, analogia, metáfora, criatividade, enfim, o que realmente importa na escrita e que requer primatas pelados de cérebro agigantado para acontecer. É mister aproveitarmos nossa vantagem sobre o silício enquanto ela existe. Enquanto escrever ainda demanda esforço, gera prazer, causa emoção. Ou celebremos os precursores de um HAL 9000, a perfeição ortográfica e textual e o fim da polícia da gramática.

2013-04-03

Ato 3: a língua portuguesa, essa coitadinha

A língua portuguesa precisa ser respeitada. Esses erros são inaceitáveis e corrompem/deturpam/violentam a língua.


Esse é o tipo de argumento que apela aos falantes da língua pela ordem, pelo respeito ao sistema. Quando o argumento de autoridade não é suficiente (a polícia da gramática é uma metáfora afinal), recorre-se a uma autoridade maior: o sistema em perfeito funcionamento, o bem comum desse sistema existir. Cometer o erro de ortografia torna-se mais que enervar o engomadinho que goza ao corrigir os outros no Facebook. Torna-se um atentado à um bem comum, como sujar a rua ou não pagar imposto. Desconfio que uns gostariam que existisse um ônzimo mandamento: XI - Não desrespeitarás sua língua materna.

O argumento quase faz sentido. Respeita-se a opinião do outro, a crença do outro, a mãe do outro, a liberdade do outro e por que não respeitar sua própria língua? Ninguém questiona é o que significa desrespeito no caso da língua. Não é ferir sentimentos de ninguém, não é ameaçar o status quo, não é proibir o direito alheio, não é desrespeitar lei. Não é rigorosamente nada. Rien de rien.

E o suposto desrespeito não significar nada não é apenas um problema de definição, é também não ter qualquer conseqüência prática imediata. A realidade é que usos não-padrão da língua (os supostos desrespeitos) não mudam o comportamento de ninguém a curto prazo. A longo prazo, mudanças são uma certeza probabilística, mas prever quais serão as mudanças e em que direção é, no melhor dos casos, exercício teórico. Sabe-se que mudam. Em alguns casos é possível quantificar até o ritmo da mudança que já aconteceu. Mas ninguém fez a previsão de que "Vossa Mercê" iria se tornar "você" no português. E não há como eliminar a possibilidade de "os mano" se tornar português padrão no futuro. (Oxalá seja. Eu tô cansado dessa redundância de marcar o plural no artigo e no substantivo).

Um aspecto implícito do argumento é que o português só sobreviveu porque gerações passadas respeitavam mais a língua. Mas se você tem mais de 16 anos e já sabe que adultos mentem e embelezam o passado, não precisa acreditar mais nessa bobagem. Apesar da ladainha do seu avô de que no tempo dele o latim era obrigatório e todo mundo tinha, no mínimo, um bom português, a língua escrita nunca foi usada com quasi-perfeição. A realidade é que, no Brasil do século XX, ser alfabetizado era privilégio. Mesmo no tempo do seu pai, o analfabetismo em pessoas de mais de 15 anos de idade ainda era de 33% em 1970, i.e., 1 em 3 pessoas não sabiam ler ou escrever. Felizmente a situação melhorou, mas ainda dá vontade de dobrar a dose do Prozac: 50,2% da população tem, no máximo, ensino fundamental completo (Censo 2010). Dominar a escrita da modalidade culta ainda é um privilégio no Brasil. E mesmo com séculos de uma minoria com acesso à escrita, e muitos desrespeitadores, o português sobreviveu. E se fortaleceu. Temos mais autores de prestígio, mais leitores, mais falantes. Na América e Europa já até sabem que falamos português e que a capital do Brasil não é Rio de Janeiro ou Buenos Aires. Tudo apesar da fictícia degeneração causada pela eterna nova geração de corruptores da última flor do Lácio.

Mas a língua portuguesa não se corrompe muito menos morre. Sabe quando uma língua morre? Quando seus falantes morrem e deixam de existir falantes nativos (e.g. latim, aramaico, grego clássico). Só que nem o holandês e o sueco, com 87% e 89% dos cidadãos bilíngües em inglês estão perto da extinção. O português brasileiro, com 190 milhões de falantes, quase na totalidade monolíngües, está sussa.

2013-03-28

Ato dois: a escrita reina

A escola não serve pra nada se esses erros não forem punidos.

Se ele cometer esse tipo de erro não vai conseguir emprego.

Muitos professores de língua portuguesa adorariam que estes argumentos fossem verdadeiros. Fariam o professor de português ser o rei dentro de uma escola. Também o tornariam co-responsável pela existência da escola e do futuro de seus alunos. Jamais ficariam desempregados e teriam ótimos salários.

Ambos argumentos exageram a importância da capacidade de dominar em minúcia a norma culta escrita da língua. No extremo é considerar o conhecimento da norma como o grande aprendizado que se leva dos anos de escolarização. Mas até que ponto o domínio da modalidade escrita da língua é o ápice da educação formal?

Não é difícil entender a ênfase da escolarização no aprendizado da leitura e escrita. O domínio da língua escrita não é um processo natural como falar e andar. O processo de letramento de uma criança ou adulto precisa de instrução explícita e anos de treino. É um processo intenso e complexo que altera morfologicamente o cérebro e até afeta a o processamento visual e da linguagem. Escrever dentro da norma culta de uma língua requer, além da proficiência em leitura, o uso da criatividade, memorização de regras arbitrárias e de irregularidades. Ainda assim, em pessoas com mais de duas décadas de ensino formal, falhas acontecem. Na verdade, se a pessoa escreve com freqüência e em volume, acontecem aos montes. Mas essa dificuldade torna o domínio da escrita a habilidade mais importante que se aprende na escola?

Antes de responder, sejamos reducionistas. A escrita, mesmo para fins literários, é uma ferramenta. Das mais poderosas inventadas, mas uma ferramenta. Uma ferramenta que se deve ter acesso universal, no mínimo, em sua língua nativa. E que faz toda a diferença para o indivíduo e proporciona disponibilidade a todo o conhecimento da humanidade. Uma pessoa escolarizada hoje, mesmo não sendo genial, poderia ensinar Leonardo Da Vinci um bocado.

Mas não é da escrita que se deriva todo o conhecimento da humanidade. A Teoria da Gravitação Universal de Newton, a Teoria da Relatividade, Mecânica Quântica, Síntese Evolutiva Moderna , Teoria da Computação, Internet e as muitas outras conquistas de nosso cérebro primata agigantado não são produtos apenas da escrita. Sem matemática, experimentação, formulação de hipóteses, criatividade não-verbal, capacidade bruta de cálculo no cérebro, a escrita não seria suficiente para chegarmos ao nível tecnológico corrente. Teríamos, no máximo, filosofia e literatura ruins. A realidade é que nem toda a instrução escolar é voltada para o aperfeiçoamento da escrita e, apesar disso, alunos se formam, vão para a universidade e viram cientistas/profissionais de sucesso sem saber exatamente onde se coloca o hífen ou sempre acertando como se escreve "exceção". Mais ainda: alguns nem tem problema em admitir isso.

E para procurar/manter um emprego? Acho que não é necessário ensinar a ninguém a usar o corretor ortográfico antes de enviar um curriculum vitae. E duvido que uma empresa de engenharia demita/deixe de contratar um bom engenheiro porque ele escreveu "vedassão" em um relatório.

Exceto se ela for dirigida por  um jornalista do tipo que brada indignação com erros ortográficos.


“God, don't they teach you how to spell these days?"
"No," I answer. "They teach us to use spell-check.” 
― Jodi Picoult

2013-03-26

Ato um: caos na ortografia

Se todo mundo começar a escrever como quiser, ninguém vai mais se entender.

Esse argumento se baseia na premissa de que existe a possibilidade que a totalidade, ou uma boa maioria, vai escrever como der na telha. Ainda que seja uma possibilidade lógica, não há evidências de que já tenha ocorrido no passado. Também não se sabe quais as condições em que essa anarquia ortográfica poderia acontecer. Talvez: 1) uma maioria se rebela contra a ortografia da classe dominante e passa a utilizar formas diferentes o tempo todo?; 2) uma amnésia ortográfica coletiva se instaura, acompanhada do desaparecimento de todos os registros escritos, e a população precisa criar uma nova ortografia? O primeiro cenário talvez dê um argumento para um comic book que um dia vai virar um filme. O segundo certamente dá um livro do Saramago. Nenhum deles é realístico.

Também assume-se que a ortografia das línguas sempre foi bem definida, um conjunto de regras claras, uma lista oficial, quase sem variação. Se não, como as pessoas se entendiam? Para não ficar muito cansativo, vou contar uma história (porque miojo todo mundo já sabe preparar).

A espécie humana em sua fisiologia moderna tem cerca de 200 mil anos, i.e., já possuíamos capacidade para a fala há 200 mil anos. A origem das primeiras línguas já é um problema mais difícil porque a fala não deixa traço material no ambiente. A estimativa mais atual sobre essa origem coloca as primeiras línguas entre entre 350-150 mil anos atrás (Perreault & Mathew 2012). A escrita, do tipo que codifica palavras e não apenas números, surgiu aproximadamente em 3200 AEC, i.e., tem uns 5,2 mil anos. Já da escrita alfabética encontram-se os primeiros indícios em 2700 AEC. Finalmente, dicionários no formato atual só surgiram em 1690 e 1755 para o francês e inglês, respectivamente.

O fato é que na quase totalidade da história do primata pelado que saiu das savanas africanas não existiu nem escrita e muito menos escrita com ortografia padronizada. Ainda assim, Roma caiu, o antigo e novo testamentos foram escritos (e reescritos) e Shakespeare nos deu Romeu e Julieta. Tudo isso sem dicionário ou corretor ortográfico! 

Claro, as variações nunca foram aleatórias ou para toda palavra possível. Não era que todo autor criasse caprichosamente uma ortografia, independente de listas oficiais ou da polícia ortográfica que faz plantão 24 por 7 nas redes sociais. Tente, por exemplo, escrever 'banana' com outra ortografia. Já com 'trouxe' rapidamente é possível gerar trousse, trouce, trouxce. A realidade é que 'trouxe' é a forma dicionarizada por acidente histórico, não pela lógica da língua ou qualquer explicação post hoc possível.

Padronização ortográfica é inegavelmente uma necessidade moderna, especialmente para o ensino em massa (nem tanto para busca na internet). Mas a ausência de padronização rígida não implicou em incompreensão generalizada e não parece haver evidências de que possa implicar no futuro. Depois do dicionário, não voltaremos aos bons tempos (exceto para os revisores) de uma pequena liberdade ortográfica. Erros ortográficos previsíveis de jovens em idade escolar produzindo um texto sob pressão e sem corretor ortográfico não são um sintoma de que a língua está ficando incompreensível nem são uma ameaça à sociedade judaico-cristã ocidental capitalista. Uma pena.



"It is a damn poor mind that can think of only one way to spell a word."
- Andrew Jackson

2013-03-25

O erro de ortografia e o colapso da sociedade judaico-cristã ocidental capitalista

Notícias sobre o ENEM viraram uma rotina desinteressante da imprensa. São louváveis quando denunciam as tentativas de fraude, exageradas quando encontram provas trocadas, conspiratórias quando caçam redações que têm gracinhas e, ainda assim, conseguem alguma nota.

Em 2013, o bolo da cereja das matérias sobre o ENEM foram as redações com nota máxima e as formas rasoavel, enchergar, trousse. O Estadão, citando opiniões de especialistas que apontam o suposto problema, conclui:


"E como aceitar que alguém que tenha 'excelente domínio das estruturas da língua portuguesa' cometa erros gramaticais primários? As autoridades se esquecem de que, se continuarem sendo lenientes com deformações da língua portuguesa, o ensino formal não tem mais sentido. Se elas continuarem tolerando erros gramaticais primários, para que serve, então, a escola?" - O Estado de São Paulo - Opinião - 2013-03-20


Também o comentarista conservador Reinaldo Azevedo mostra sua indignação:


"'trousse', 'enchergar' e 'rasoavel' não são variantes linguísticas nem segundo as considerações dos aloprados do 'nós pega os peixe'. Vai bem a escolinha do professor Mercadante." - Blog do Reinaldo Azevedo. Acessado em 2013-03-24.


Críticas sem substância? Concordo. Podem procurar nas indignações banais do Facebook, nos comentários ao artigo do Reinaldo Azevedo, nos editoriais da imprensa escrita e o que irão encontrar é apenas indignação e crítica/xingamento ao governo e ao Partido dos Trabalhadores. O porquê de tais formas serem absurdas, inadmissíveis, erros grosseiros, uma afronta à língua, nunca é explicitado com argumentos empíricos. No caso do ENEM 2012, o insulto adicional aos indignados é porque redações com 'trousse' et alii recebeu nota máxima da banca, nota entendida como reservada a textos sem falhas, ou com falhas mínimas (só não me perguntem como definir a gravidade da falha).


A noção de que nota máxima deve ser reservada para a perfeição, chocantemente, não é um fetiche universal. Ela não é regra nas melhores universidades americanas, nas universidades francesas ou na Universidade de Brasília. A idéia por trás de sistemas de conceitos discretos, em oposição a valores contínuos de zero a dez/cem/mil, é reconhecer o mérito, ainda que com pequenas falhas. Pode ser visto também como reconhecimento que sistemas biológicos, como o cérebro humano, falham até nos seus melhores exemplares.


Já a noção de erro grosseiro para 'trousse' e seus colegas xucros é mais pervasiva. Indignar-se com essas formas passa até por bom senso (ou seria senso comum? Nunca consegui distinguir um do outro) numa conversa informal:

Madama 1: Menina, cê viu o absurdo da redações do ENEM com erros horrorosos que tiraram nota máxima?
Madama 2: Eu vi, amiga. Fiquei pasma! Se fosse filho meu, pedia pra baixarem a nota.

Os argumentos para justificar a indignação pública, quando existem, são:


  1. Se todo mundo começar a escrever como quiser, ninguém vai mais se entender.
  2. A escola não serve pra nada se esses erros não forem punidos.
  3. São erros primários. Esses erros mostram que o aluno não sabe escrever direito.
  4. A língua portuguesa precisa ser respeitada. Esses erros são inaceitáveis e corrompem/deturpam/violentam a língua.
  5. Se ele cometer esse tipo de erro não vai conseguir emprego.

Há variações e outros argumentos mais exóticos, mas vamos assumir que esses são os argumentos mais freqüentes (um chute, eu assumo) dos indignados cidadãos (ões?) de bom senso que pagam seus impostos e respeitam as leis. E a ortografia.

Já devem imaginar por qual via argumentarei, certo? O que garanto é que será com fatos e dados, não clamor indignado ou ataques ao governo.

Continua...

2013-03-20

É a religião, estúpido.

Decidi me render aos temas correntes. A burocracia é chata demais e a vida é uma só. A pauta é Marco(s?) Feliciano e o papa. Na verdade, a pauta é religião: pra quem quer e pra quem não quer.

A eleição do papa lembrou a quem não estava prestando atenção que a principal seita cristã, com mais de um bilhão de membros mais ou menos ativos, tem princípios retrógrados e líderes homofóbicos e preconceituosos. Concedo que nem todos os católicos concordem com seu lider, mas deve ser uma minoria silenciosa. Ou que se diz parcialmente católica. Ou que não leva a coisa toda muito a sério, exceto pela crença no designer supremo e um gosto compatilhado dos eventos sociais (particularmente difíceis de serem suportados sem comida ou álcool por ateus). São todas opções melhores que catolicismo pleno. Ainda assim, inferindo pelo tempo de TV e volume de notícias da última semana, muita gente se importa o bastante com escolha do líder que se diz infalível.

Já o líder de outra seita, o pastor Feliciano, vem sendo notícia por ser assumidamente homofóbico e preconceituoso. Na verdade, ninguém se importaria muito se ele não tivesse sido eleito presidente de uma comissão parlamentar que trata da defesa de minorias e direitos humanos. Como não é o líder máximo de uma seita tão poderosa como a católica, poucos se arriscam a defendê-lo publicamente. Ou talvez seja porque não usa cetro e capa, difícil ter certeza.

Os que não se sentem representados pelo papa Francisco ou pelo pastor Feliciano desviam o foco do problema: o filho do hômi não faria assim, que eles não são verdadeiros cristãos, que as seitas estão todas corrompidas e distantes da verdade divina, que o manual está sendo interpretado incorretamente, blablabla. É um interessante jogo de imaginação: o que JC realmente faria, como seriam esses cristãos puro sangue, como seria a mais pura das seitas, e se interpretassem o manual corretamente (boa sorte). Não por acaso, esse momento perfeito parece ter acontecido unicamente há dois milênios, e ainda assim assumindo que o manual está factualmente correto. Depois desse momento mágico, conquistas sangrentas, imposição da fé, torturas, execução na fogueira, pedofilia e discriminação foram algumas das ações praticadas, apoiadas, protegidas  ou acobertadas por líderes católicos. Já as outras seitas não têm uma história tão maculada e há até algumas que não tem nenhum problema se os fiéis ou pastores forem gays. A Wikipedia tem uma lista de denominações LGBT friendly.

Mas seriam, no fundo, tão diferentes? Os princípios são similares: crença num ser sobrenatural e que rege (caprichosamente) o universo, código moral rígido, fé. Com esses princípios e um manual escrito e remendado por séculos (e que se publicado hoje venderia menos que um jornal de segunda-feira), todo o tipo de preconceito e violência podem ser justificados. Ou condenados. Como saber quem está certo? Por sorte, as sociedades modernas conquistaram aos poucos o estado laico e adotam uma moralidade guiada por instinto (só um pouco), justiça social, compreensão do mundo natural. Rejeitar ou esquecer que existe um Capo di tutti capi pode não ser confortável para a maioria. Mas esse conforto tem sido o preço de eleger o Feliciano e legitimar o papa.

Alto demais.

2013-03-18

As dez razões para se comprar um iPad para os burocratas

1 - iPads são chiques. O brasileiro tem de deixar de lado a síndrome de vira-lata. Por quê temos de ficar eternamente com produtos de nomes obscuros, mais baratos e sem nenhum glamour? O burocrata brasileiro, que, como princípio geral, não precisa ter competência técnica pro seu cargo comissionado, merece o melhor tablet possível do mercado. Mostrarei porque o iPad é o melhor tablet do mercado.

2 - iPads têm uma tela maravilhosa. E como nossos burocratas vão usar justamente pra visualizar gráficos feitos no Microsoft Excel com altíssima resolução, a tela do iPad é um must.

3 - iPads vêm na cor branca. Sei que o motivo parece fútil, mas só para os que não entendem do assunto. A cor branca do iPad vai refletir mais luz solar e o iPad vai esquentar menos. O branco também combina com o branco dos carros oficiais e da camisa dos burocratas. Questão de identidade visual, essencial para as organizações do mundo globalizado do terceiro milênio.

4 - iPads obedecem comandos de voz em inglês com o Siri (o acento é na primeira sílaba). Os desinformados podem não saber, mas, com o Ciência sem Fronteiras, a ordem do dia é falar inglês. Como os estudantes não estão aprendendo inglês do dia pra noite como quer o governo, os burocratas vão aprender na marra. Ou falam inglês ou o iPad não funciona! Fair enough.

5 - iPads têm sistema operacional proprietário. Esse motivo não é muito intuitivo, eu assumo, mas vamos lá. Esqueçam toda essa história de software livre, o Portal do Software Público. Ninguém aguenta mais essa mania ridícula de alguns órgãos públicos de usar Open Office só pra não comprar os aplicativos da Microsoft. Quando me falam em usar Skype pra economizar na conta telefônica, dá vontade de esfaquear, metaforicamente, a mandíbula do camarada. Um sistema operacional proprietário não irá permitir que engraçadinhos do setor de informática do governo personalizem ou aperfeiçoem o sistema operacional ou uso dos tablets. Muito menos lançar aplicativos que não sejam aprovados pela Apple. Um sistema operacional proprietário garante que tudo funcione sem erros, ou só com os erros que a Apple permitir, o que é especialmente importante porque ninguém vai assumir qualquer erro, claro. Last, but not least, não há o risco da Apple começar a ficar mal das pernas e iPads virarem itens de museu. A idéia acertada é colocar todas as fichas no equipamento proprietário de uma única empresa e ter fé porque deus é brasileiro, ainda que o procurador dele seja argentino.

6 - iPads não possuem armazenagem externa, i.e., cartões de memória. "Mas cartão de memória não seria uma boa?", um leigo argumentaria. Nananimnanão. Cartão de memória requer uma abertura no equipamento. Toda a elegância, design, beleza suprema do iPad seria arruinada por um buraco fora do lugar que serviria para acumular poeira. E já viram a poeira vermelha de Brasília? Com as conexões 4G e wi-fi disponíveis em qualquer lugar no Brasil, a transferência de vários Gigabytes de dados pode ser feita muito mais rapidamente via rede do que os cinco segundos gastos para trocar um cartão de memória. Totally future proof.

7 - iPads não podem ter aplicativos pornográficos. Internet e pornografia é o elefante na sala de jantar mais pervasivo da modernidade. Como homens ainda são maioria em cargos comissionados no serviço público, seria impossível evitar que um ou outro utilizasse os tablets funcionais para ajudar a aliviar o estresse pós-reunião. Mas não com um iPad. Vão ter de se contentar com seus dispositivos pessoais Android de segunda classe. Nem adianta tentar usar o browser porque os sites em Flash não vão funcionar. Supostamente.

8 - iPads têm mais e melhores jogos. Mas pra quê jogos em tablets corporativos? Para explicar esse ponto é necessário revelar aos contribuintes o que é uma obviedade para os burocratas: reuniões de trabalho entre burocratas são longas e entediantes. Nos piores casos, e nessas é que os jogos serão essenciais, um burocrata fala, apresenta slides de Powerpoint e os outros fingem que escutam, mas, no fundo, não têm o menor interesse pelo que o outro tem a dizer. Assim, esses que escutam precisam de uma atividade durante a reunião ou correm o risco de ter morte neuronal, pela ausência de uso do cérebro por períodos prolongados, e de sofrerem lesões músculo-esqueléticas causadas por adormecimento repentino em posição desconfortável. No passado, palavras cruzadas, desenhos e textos variados eram as atividades mais populares. Com um tablet, todas essas opções estarão disponíveis e mais GTA IV, Need for Speed, Angry Birds, etc. Com um iPad será possível ter uma plataforma que estimule memória, coordenação motora, atenção e o que for mais preciso para manter a saúde mental do burocrata durante uma carreira de intermináveis reuniões.

9 - iPads têm a tela altamente refletiva. Esse é uma razão assumidamente fútil, em grande parte, mas não totalmente. Um tablet com tela reflexiva pode servir de espelho mesmo sem energia. Para aqueles momentos em que é necessário retocar a maquiagem, ajeitar o penteado. Pra quê perder tempo indo ao banheiro ou pegando o espelho na bolsa. O tablet já está lá, vá em frente e use-o para garantir que a gravata está no lugar e que o rímel não está borrado. Aparência é tudo, não é o que dizem?

10 - iPads têm um cabo de energia exclusivo e incompatível com qualquer outro tablet do mercado, incluindo iPads anteriores. Novamente uma aparente desvantagem que é uma vantagem. Um cabo exclusivo significa, em primeiro lugar, exclusividade. Já vimos na razão 5 a importância do contribuinte pagar para que os burocratas utilizem um tablet de sistema proprietário e fechado. Nada mais natural que esse monopólio de fornecedor se estenda até os cabos de energia. Não dá pra que qualquer cabo possa ser plugado num lindo iPad de última geração. Imaginem um tablet em que o cabo de alimentação seja facilmente substituível ou, o horror, possa ser compartilhado com outros aparelhos como celulares corporativos. Tal cabo compartilhado poderia transmitir até vírus ou sabe-se lá o quê mais. Melhor não arriscar.


2013-03-17

Pra fechar: mais razões para se gastar mais com iPads

7 - iPads não podem ter aplicativos pornográficos. Internet e pornografia é o elefante na sala de jantar mais pervasivo da modernidade. Como homens ainda são maioria em cargos comissionados no serviço público, seria impossível evitar que um ou outro utilizasse os tablets funcionais para ajudar a aliviar o estresse pós-reunião. Mas não com um iPad. Vão ter de se contentar com seus dispositivos pessoais Android de segunda classe.

8 - iPads têm mais e melhores jogos. Mas pra quê jogos em tablets corporativos? Para explicar esse ponto é necessário revelar aos contribuintes uma obviedade para os burocratas: reuniões de trabalho entre burocratas são longas. Nos piores casos, e nessas é que os jogos serão essenciais, um burocrata fala, apresenta slides de Powerpoint e os outros fingem que escutam, mas, no fundo, não têm o menor interesse pelo que o outro tem a dizer. Assim, esses que escutam precisam de uma atividade durante a reunião ou correm o risco de ter morte neuronal, pela ausência de uso do cérebro por períodos prolongados, e de sofrerem lesões músculo-esqueléticas causadas por adormecimento repentino em posição desconfortável. No passado, palavras cruzadas, desenhos e textos variados eram as atividades mais populares. Com um tablet, todas essas opções estarão disponíveis e mais GTA IV, Need for Speed, Angry Birds, etc. Com um iPad será possível ter uma plataforma que estimule memória, coordenação motora, atenção e o que for mais preciso para manter a saúde do burocrata durante uma carreira de intermináveis reuniões.

9 - iPads têm a tela altamente refletiva. Esse é uma razão assumidamente fútil, em grande parte, mas não totalmente. Um tablet com tela reflexiva pode servir de espelho mesmo sem energia. Para aqueles momentos em que é necessário retocar a maquiagem, ajeitar o penteado. Pra quê perder tempo indo ao banheiro ou pegando o espelho na bolsa. O tablet já está lá, vá em frente e use-o para garantir que a gravata está no lugar e que o rímel não está borrado.

10 - iPads têm um cabo de energia exclusivo e incompatível com qualquer outro tablet do mercado, incluindo iPads anteriores. Novamente uma aparente desvantagem que é uma vantagem. Um cabo exclusivo significa, em primeiro lugar, exclusividade. Já vimos na razão 5 a importância do contribuinte pagar para que os burocratas utilizem um tablet de sistema proprietário e fechado. Nada mais natural que esse monopólio de fornecedor se estenda até os cabos de energia. Não dá pra que qualquer cabo possa ser plugado num lindo iPad de última geração. Imaginem um tablet em que o cabo de alimentação seja facilmente substituível ou, o horror, possa ser compartilhado com outros aparelhos como celulares corporativos. Tal cabo compartilhado poderia transmitir até vírus ou sabe-se lá o quê mais. Melhor não arriscar.

2013-03-14

Há esperança?

Local: Livraria de Shopping numa metrópole brasileira
Data: 2013-03-14 E.C. 

Duas adolescentes de 17 anos saltitam pelos corredores da livraria. Nenhuma segura '50 tons de cinza'. Na seção de literatura brasileira, sem cara de nojo e sem hesitação, uma pega um livro da seção de autores de sobrenome começando em M. 

Teen 1: eu AMO Machado de Assis. 
Teen 2: eu tb adooooro Machado de Assis. 
Teen 1: tem gente que num gosta, né? 
Teen 2: como pode né? 

Pelo rosto da professora de literatura recém formada e ainda não embotada pelo Prozac, desce uma lágrima.

2013-03-12

Mais três razões pro contribuinte pagar por iPads

Mais três razões para garantir que os burocratas brasileiros tenham iPad.

4 - iPads obedecem comandos de voz em inglês com o Siri (o acento é na primeira sílaba). Os desinformados podem não saber, mas, com o Ciência sem Fronteiras, a ordem do dia é falar inglês. Como os estudantes não estão aprendendo inglês do dia pra noite como quer o governo, os burocratas vão aprender na marra. Ou falam inglês ou o iPad não funciona! Fair enough.

5 - iPads têm sistema operacional proprietário. Esse motivo não é muito intuitivo, eu assumo, mas vamos lá. Esqueçam toda essa história de software livre, o Portal do Software Público. Ninguém aguenta mais essa mania ridícula de alguns órgãos públicos de usar Open Office só pra não comprar os aplicativos da Microsoft. Quando me falam em usar Skype pra economizar na conta telefônica, dá vontade de esfaquear, metaforicamente, a mandíbula do camarada. Um sistema operacional proprietário não irá permitir que engraçadinhos do setor de informática do governo personalizem ou aperfeiçoem o sistema operacional ou uso dos tablets. Muito menos lançar aplicativos que não sejam aprovados pela Apple. Um sistema operacional proprietário garante que tudo funcione sem erros, ou só com os erros que a Apple permitir, o que é especialmente importante porque ninguém vai assumir qualquer erro, claro. Last, but not least, não há o risco da Apple começar a ficar mal das pernas e iPads virarem itens de museu. A idéia acertada é colocar todas as fichas no equipamento proprietário de uma única empresa e ter fé porque deus, e quem sabe o papa, é brasileiro.

6 - iPads não possuem armazenagem externa, i.e., cartões de memória. "Mas cartão de memória não seria uma boa?", um leigo argumentaria. Nananimnanão. Cartão de memória requer uma abertura no equipamento. Toda a elegância, design, beleza suprema do iPad seria arruinada por um buraco fora do lugar que serviria para acumular poeira. E já viram a poeira vermelha de Brasília? Com as conexões 4G e wi-fi disponíveis em qualquer lugar no Brasil, a transferência de vários Gigabytes de dados pode ser feita muito mais rapidamente via rede do que os cinco segundos gastos para trocar um cartão de memória. Totally future proof.

Unintended consequences


Depois que se coloca uma idéia, um texto na web, diga adeus ao seu propósito original.

Claro, a maioria dos usos do que você jogou ao mundo será inofensivo, inútil. Algumas vezes o autor ou idéia serão ridicularizados, possivelmente elogiados. Pode inflar seu ego, te deixar fulo, mas nada que você não soubesse ou pudesse prever antes. O que deixa o camarada querendo se jogar da ponte mesmo é o uso para o mal (por alguém mau), o uso pra foder com alguém, ou pior, foder um monte de gente. Resta sentar, chorar e lamentar? É uma opção. A minha é mudar de lado e ajudar a piorar um pouco. Explico.

Mesmo com meia dúzia de visitas por dia, o Blogger gera estatísticas de acesso ao blog e por qual tipo de busca o encontram. A maioria é puramente preguiça das pessoas de escrever ou lembrar o nome do blog. O meu momento de espanto foi encontrar nos dados de acesso alguém que chegou ao blog procurando por: "justificar aquisiçao técnica do iPad". Eu estava comentando exatamente  o contrário: por quê comprar especificamente um iPad e não de qualquer outra marca que atenda à função do que ser com um tablet? Por que não fazer a especificação do que se precisa de fato e deixar que o mercado ofereça o melhor produto ao contribuinte?

Mas eu desisti disso. O burocrata brasileiro, especialmente o que ganha mais, é fútil, não gosta da lei de licitações, e quer ter sua vontade obedecida a qualquer custo (antes que perguntem: não, não há exceções). Vou ajudá-lo então. Quem sabe sobra uma boquinha pra mim, né? Venha a mim o burocrata preguiçoso, que quer agradar o "chefe" e colocar com força na parte traseira do contribuinte. As dez razões para que o governo compre iPads. Eis as primeiras três:

1 - iPads são chiques. O brasil tem de acabar com a síndrome de vira-lata. Por quê temos de ficar eternamente com produtos de nomes obscuros, mais baratos e sem nenhum glamour. O burocrata brasileiro, que, via de regra não precisa ter competência técnica pro seu cargo comissionado, merece o melhor tablet possível.

2 - iPads têm uma tela maravilhosa. E como nossos burocratas vão usar justamente pra visualizar gráficos feitos no Microsoft Excel com altíssima resolução, a tela do iPad é um must.

3 - iPads vêm na cor branca. Sei que o motivo parece fútil, mas só para os que não entendem do assunto. A cor branca do iPad vai refletir mais luz solar e o iPad vai esquentar menos. O branco também combina com o branco dos carros oficiais e da camisa dos burocratas. Questão de identidade visual, essencial para as organizações do mundo globalizado do terceiro milênio.

No próximo post, mais razões para comprar o iPad para um órgão público. Segura essa Samsung.


Santo iPad.

2013-01-31

Segredos da Esplanada

Imagino que alguns dos pacientes leitores já conheçam o projeto Post Secret: pessoas enviam cartões postais anonimamente contando seus segredos mais íntimos para toda a internet. O anonimato é que torna tudo possível e interessante, claro.

Já existem vários spin-offs do Post Secret, mas não encontrei nenhum com foco para assuntos da burocracia (nem imagino o porquê). Mas eu vou tentar e publicarei se alguém quiser compartilhar um segredo com tema burocracia e assuntos relacionados.

Peço a todos os leitores que me enviem segredos de seus locais de trabalho que só divulgariam anonimamente (ou que são conhecidos, mas não fora do órgão). Nada que ofenda ou acuse alguém. Nenhum segredo protegido por lei ou norma, i.e., nada do tipo Wikileaks. Vamos às regras das submissões então.

  1. Os segredos podem ser seus ou de outras pessoas, mas sempre anônimos.
  2. Os segredos não devem mencionar nomes, cargos ou setores específicos.
  3. Os segredos podem ser cômicos, tragicômicos, de indignação com alguma situação, de autodepreciação (mas vai continuar anônimo), vexatórios, confessionais, you name it.
  4. Segredos poderão ser remetidos como texto (link ao fim do post), figuras, ou texto + figuras. Se for só texto, talvez eu passe o corretor ortográfico. Provavelmente não. 
  5. Segredos com figuras podem ser enviados para postsecretdaesplanada@gmail.com.
  6. Ao enviar o segredo, você abdica totalmente do copyright. Vai que recebo material muito bom e faço um livro de verdade. Em troca, além da publicação do segredo, doarei 10,5% do possível ganho com o livro para uma caridade.
  7. Palavrões serão totalmente aceitos. Caretice pra quê?
  8. Você não precisa trabalhar na Esplanada. É suficiente que você trabalhe num órgão ou empresa pública federal, estadual ou municipal/distrital.

2013-01-29

Neither Rhyme nor Reason

Em conversa ontem minha mãe falou da tristeza que estava sentindo pela tragédia em Santa Maria. Além das mortes de tantas pessoas jovens, ela ficou pensando que algo similar poderia ter acontecido comigo, que estudei longe de casa e numa cidade conhecida pela vida universitária (Campinas). Tentei desconversar que nunca fui muito de boate, mas, obviamente, ela estava certa. Mesmo já distante dos anos de vida universitária na graduação, a comparação foi inevitável e, sendo mãe, a identificação com as mães de vítimas da tragédia atingiu mais perto. A tragédia trouxe à memória que o improvável acontece e que poderia ser com alguém próximo.

Para um ateu, não há melhor explicação de não ter sido comigo do que o "tive sorte". Não que essa sorte tenha qualquer causa (ou uma causa possível de precisar). Minha sorte foi como a da maioria que não morre em acidentes, de doenças raras ou em tragédias. Uma sorte corriqueira, que damos por certa para qualquer motivo prático. Na verdade, temos de assumir que teremos essa sorte para conseguir viver com certa normalidade. Achar que o avião vai sempre cair é irracional e não nos leva longe.

Então uma tragédia como a de Santa Maria acontece e, especialmente pelo número e idade das vítimas, lembramos que um sábado à noite de diversão pode antecipar o provável ataque cardíaco na beira da praia com a quarta esposa aos 87 anos de idade. Ou não deixar que você complete aquele seu livro sobre o fim do machismo no ocidente que será completado e lançado mundialmente quando você estiver com 107 anos. Pode-se desejar e esperar que o improvável não aconteça. Pode-se até melhorar um pouco as probabilidades tendo uma vida saudável e não fazendo burrices como dirigir após alguns drinks porque você "tá super bem e é ótimo motorista". Mas não é possível ou prático evitar o improvável. Para ateus, que não acreditam em qualquer continuidade após a morte cerebral, pode parecer que a situação é desesperadora. Deus não te protege (nem te põe em roubadas com a desculpa de escrever certo por linhas tortas), não te dá a aprovação naquele concurso dos sonhos e você não vai reencontrar aquele grande amor numa vida eterna. Também não vai encontrar tempo para ler "Em Busca do Tempo Perdido". Sem rima nem razão, continuamos a existir guiados pela natureza e pelo meio. E, mesmo não sendo um bobo alegre que vê o lado bom em tudo, é possível ver a situação como estimulante (para alguns, antidepressivos ajudam).

Estimulante porque resta o presente com suas conseqüências; o futuro próximo que desejamos ansiosamente ou queremos ficar livres e seguir adiante; e os sonhos do futuro distante que esperamos que aconteçam sem imprevistos, mas que temos pouco (nenhum) controle sobre. Por sorte também, até coisas boas acontecem nesse futuro distante.

Restam os zilhões de detalhes da realidade, complexa além do que é possível simular ou conceber, mas que, por sorte, não parece estar à mercê de um criador caprichoso e onipotente. É possível aprender coisas novas e obscuras todos os dias que, com sorte, poderão ser usadas para impressionar a Camila Pitanga naquele esbarrão acidental no aeroporto.

Resta racionalizar que cada pessoa, com sua genética, cérebro e história únicas, é um acaso extremamente improvável, mas que aconteceu. Vai que a Camila Pitanga é uma chata e aquela paquera que parecia descompromissada é que vai ser a sua companheira para toda a vida.

Resta, finalmente, tentar desfazer a ilusão persistente de que somos so fucking special. Tivemos a sorte de ter um cérebro gigantesco (mas que dá uns bugs de vez em quando) e ter tido mais sorte na savana africana que nossos primos primatas. Ainda assim, realisticamente, não somos mais que poeira cósmica. Exceto para as mães.

2013-01-25

Mordomia ou vergonha alheia?

A rádio esplanada me contou de uma agência estatal que contratou vários garçons para servir café, chá e água para os servidores. Não apenas para VIPs nas cadeiras numeradas ou na Tribuna de Honra, mas para a arquibancada comum também (ouvi falar que a geral não existe mais).

Funciona assim: o garçom passa com um carrinho com as bebidas pelas mesas 4 vezes por dia. Além desses quatro atendimentos, um copo com água é colocado na mesa dos que quiserem no começo do dia. Parece que estão todos gostando. Claro, quem não gosta de ser servido sem pagar nada diretamente? Como se estivesse num café trabalhando sem pagar pela bebida nem dar gorjeta.

Fico imaginando o que a maioria das pessoas do tal órgão pensa sobre o assunto. Melhor, o que a maioria pensaria se parar para pensar no assunto. Como o exercício de achismo e leitura de mente é fútil, fiquemos mais próximos dos fatos. Ao menos com os fatos reinterpretados pelo meu cérebro.

Há, inegavelmente, uma situação excepcional. A maioria dos servidores públicos não tem café servido na mesa (e nenhum bebe café decente no local de trabalho), especialmente os que não ocupam cargo. E essa excepcionalidade é necessária ou supérflua? Um exemplo a ser copiado ou motivo de vergonha pra administração?

Os que já saíram da ilha da fantasia (Brasília) ou do continente da desigualdade social (Brasil) costumam sabem que ter garçons (ou ascensoristas) no local de trabalho não é usual. Além de raro, remete a uma época de privilégios, gastos desnecessários, época de desigualdade social em que havia abundância de candidatos para empregos de garçom. Há uma normalidade em preparar e pegar seu próprio café. Apertar o botão do seu andar (ou fazer a gentileza de apertar para um colega) ou esperar dois minutos a mais pelo elevador é completamente aceitável e não justifica contratar ascensoristas para elevadores modernos. Mas aqui na Esplanada e arredores, há quem se gabe: "onde eu trabalho tem garçom pra pra todo mundo!"

Além daqueles que acham normal, bacana, legal, há os que racionalizam: gera empregos. Claro, com dinheiro que não sai do seu bolso, é uma beleza essa geração de empregos. Ainda: por que não ampliar essa lógica ao absurdo? Desistir de fazer capanhas para que ninguém dirija e beba: vai gerar mais empregos para socorristas, mecânicos, donos de ferro-velho, médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, embalsamadores, coveiros.

E, claro, por que não ter mais pessoas servindo os que não precisam ser servidos? É obviamente uma lógica cruel e elitista. Perpetuar a existência de empregos de baixa qualificação com a desculpa de que há quem precise desses empregos. Incentivar a manutenção de uma sociedade em que a diferença de salários é abismal. Manter o status quo (daqui) com uma aura de benfeitor.

Ou talvez seja tudo uma grande conspiração pra acabar com a conversa no bebedouro, na copa, nos corredores. Vai que alguém tem a idéia absurda de discordar do idiota que chama de chefe...