2013-04-03

Ato 3: a língua portuguesa, essa coitadinha

A língua portuguesa precisa ser respeitada. Esses erros são inaceitáveis e corrompem/deturpam/violentam a língua.


Esse é o tipo de argumento que apela aos falantes da língua pela ordem, pelo respeito ao sistema. Quando o argumento de autoridade não é suficiente (a polícia da gramática é uma metáfora afinal), recorre-se a uma autoridade maior: o sistema em perfeito funcionamento, o bem comum desse sistema existir. Cometer o erro de ortografia torna-se mais que enervar o engomadinho que goza ao corrigir os outros no Facebook. Torna-se um atentado à um bem comum, como sujar a rua ou não pagar imposto. Desconfio que uns gostariam que existisse um ônzimo mandamento: XI - Não desrespeitarás sua língua materna.

O argumento quase faz sentido. Respeita-se a opinião do outro, a crença do outro, a mãe do outro, a liberdade do outro e por que não respeitar sua própria língua? Ninguém questiona é o que significa desrespeito no caso da língua. Não é ferir sentimentos de ninguém, não é ameaçar o status quo, não é proibir o direito alheio, não é desrespeitar lei. Não é rigorosamente nada. Rien de rien.

E o suposto desrespeito não significar nada não é apenas um problema de definição, é também não ter qualquer conseqüência prática imediata. A realidade é que usos não-padrão da língua (os supostos desrespeitos) não mudam o comportamento de ninguém a curto prazo. A longo prazo, mudanças são uma certeza probabilística, mas prever quais serão as mudanças e em que direção é, no melhor dos casos, exercício teórico. Sabe-se que mudam. Em alguns casos é possível quantificar até o ritmo da mudança que já aconteceu. Mas ninguém fez a previsão de que "Vossa Mercê" iria se tornar "você" no português. E não há como eliminar a possibilidade de "os mano" se tornar português padrão no futuro. (Oxalá seja. Eu tô cansado dessa redundância de marcar o plural no artigo e no substantivo).

Um aspecto implícito do argumento é que o português só sobreviveu porque gerações passadas respeitavam mais a língua. Mas se você tem mais de 16 anos e já sabe que adultos mentem e embelezam o passado, não precisa acreditar mais nessa bobagem. Apesar da ladainha do seu avô de que no tempo dele o latim era obrigatório e todo mundo tinha, no mínimo, um bom português, a língua escrita nunca foi usada com quasi-perfeição. A realidade é que, no Brasil do século XX, ser alfabetizado era privilégio. Mesmo no tempo do seu pai, o analfabetismo em pessoas de mais de 15 anos de idade ainda era de 33% em 1970, i.e., 1 em 3 pessoas não sabiam ler ou escrever. Felizmente a situação melhorou, mas ainda dá vontade de dobrar a dose do Prozac: 50,2% da população tem, no máximo, ensino fundamental completo (Censo 2010). Dominar a escrita da modalidade culta ainda é um privilégio no Brasil. E mesmo com séculos de uma minoria com acesso à escrita, e muitos desrespeitadores, o português sobreviveu. E se fortaleceu. Temos mais autores de prestígio, mais leitores, mais falantes. Na América e Europa já até sabem que falamos português e que a capital do Brasil não é Rio de Janeiro ou Buenos Aires. Tudo apesar da fictícia degeneração causada pela eterna nova geração de corruptores da última flor do Lácio.

Mas a língua portuguesa não se corrompe muito menos morre. Sabe quando uma língua morre? Quando seus falantes morrem e deixam de existir falantes nativos (e.g. latim, aramaico, grego clássico). Só que nem o holandês e o sueco, com 87% e 89% dos cidadãos bilíngües em inglês estão perto da extinção. O português brasileiro, com 190 milhões de falantes, quase na totalidade monolíngües, está sussa.

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