2014-04-09

E se fosse você?



E se fosse você a pessoa surrada, nua e presa a um poste para humilhação pública? Os defensores da moral preto e branco diriam que seria uma situação impossível: não são ladrões e não fazem coisas erradas para merecer tal castigo. Alguns com essa moral de certezas chegariam a dizer que mereceriam se realmente fossem bandidos. Especialmente porque seria uma possibilidade hipotética, claro. E ambos concordam que quem chamam de marginal, mereceu o castigo.

Há outras categorias de moralismo. Há quem discorde do tratamento dos justiceiros neste caso, mas, se o acorrentado fosse um pedófilo ou estuprador, diriam que mereceria ainda mais. Há ainda quem discorde da justiça das ruas, mas acha que, seguido o processo legal, o homicida, o estuprador e o pedófilo deveriam morrer. Civilizadamente e com a aprovação do Estado. Uma variação menos extrema seria a prisão perpétua. Poucos concordam que 30 anos de prisão para os piores crimes é suficiente. Ainda menos suficientes são os que repudiam e se comovem com o adolescente espancado e amarrado ao poste.

Essas categorias ilustram como o bom-senso-comum prega a punição rígida, às vezes apenas para crimes violentos, às vezes até para o ladrão de hospital, que não foi violento. O desejo de punição severa, dolorosa aumenta com a indignação, com a violência, se o crime foi de natureza sexual, se foi contra pessoas indefesas e ou se houve tortura.

Mas qual o apelo da punição severa, tortura e até morte para alguns criminosos? Diversos, mas escolho um: a possibilidade de escolha. O pressuposto de que quem comete o crime sempre poderia escolher não cometer, mas, por ter decidido ir em frente, merece alguma punição.

Exceções à punição mais severa são fáceis de descartar: o que rouba para comer em situação de desespero e o que apresenta problema mental grave e não é capaz de distinguir entre o certo e errado, entre real e fantasia. Os outros desviantes são vistos num quase contínuo pelo sistema judicial. E, para quase todos, assume-se que a escolha sempre é possível. Outra possível exceção, esta do bom-senso-comum, é a de que os justiceiros também não teriam escolha ao espancar e humilhar um adolescente. Eles estariam, afinal, protegendo a comunidade e se excederam.

Liberdade de escolha

A possibilidade de escolha entre legal e ilegal, entre moral e imoral, justo ou injusto é a premissa essencial para a noção de que seres humanos possuem livre arbítrio. Sem entrar em detalhes de definição, o livre-arbítrio a que me refiro é o que supõe que qualquer pessoa poderia ter tomado uma decisão diferente da que, de fato, tomou, ainda que tenha sido fortemente influenciada. Exemplo: você está solteiro e encontra a Camila Pitanga bebendo um suco de laranja no bar do aeroporto. Conversam, ela não resiste ao seu charme e o resultado é o esperado: ambos perdem o vôo. Seguem para o hotel mais próximo trocando amassos de ruborizar o motorista de táxi com 30 anos de praça e que já viu de tudo. Na hora do check-in, você pode: 1) pedir um só quarto e ter a noite dos seus sonhos; ou 2) pedir quartos separados e despachar a Camila Pitanga porque precisa acordar cedo, o que é mentira. Diz que foi ótimo conhecê-la e que a noite de sexo selvagem fica pra próxima. Acreditar em livre arbítrio é acreditar que a segunda opção é possível.

Livre arbítrio vale tanto para escolhas difíceis como as ordinárias: terminar o casamento de 20 anos ou escolher entre sorvete de pistache ou chocolate belga. Nessas, ou em qualquer outra situação, a escolha pode ser qualquer uma entre as possíveis, e o indivíduo, não estando em situação como a de ter uma arma apontada para a cabeça, supostamente, faz sua escolha livremente.

Escolha ex nihilo?

Ainda que você não acredite em alma, você não é um humano que tem um cérebro. Você é o seu cérebro. Se seu cérebro sofre dano, é alterado por drogas, ou é afetado por um tumor, sua cognição e comportamento se modificam. Decisões que não seguiriam seu padrão são tomadas, i.e., você deixa de ser quem tipicamente era. Exemplo típico é a doença Alzheimer. Pessoas afetadas exibem comportamento errático e até agressivo. Mas é um caso em que, tipicamente, não se reconhece culpabilidade moral, liberdade de escolha, livre-arbítrio. Outras doenças mentais (cerebrais) também têm, parcialmente, o status da perda de autonomia: vício em álcool, drogas e jogo, depressão. Mas como são tratáveis e podem se estabilizar, atribui-se falha de caráter, pouca força de vontade ou preguiça ao indivíduo que não supera essas condições, especialmente quando ele recusa ajuda ou não continua o tratamento.

No entanto, tanto o comportamento do alcoólico quanto da pessoa afetada pela doença de Alzheimer são causados pelo cérebro. No primeiro caso por uma cadeia de eventos que incluem genética, desenvolvimento cerebral e ambiente. No segundo caso, uma doença que degrada o cérebro. E qual seria a diferença entre os dois cérebros, além da doença? Apenas a genética? Apenas o ambiente? Na verdade, ambos fatores para ambos os casos. Qual seria, então, a culpabilidade moral que alguém pode ter por herdar um conjunto desfavorável de genes, ter crescido num ambiente não privilegiado ou ter pais abusivos?


O alcoólico, como qualquer outra pessoa, não escolheu sua genética, ambiente, história. Não escolheu, portanto, o estado do seu cérebro que o tornou um alcoólico. Ainda assim, supostamente pode escolher livremente controlar seus impulsos, largar a dependência. Também a pessoa com Alzheimer não teve escolha em sua genética, ambiente, história. Mas, por ter uma doença que afeta degrada seu cérebro, teria passe livre em seu livre-arbítrio?

Em outros termos: se o livre arbítrio é reduzido a um cérebro saudável, normal, seria esperado que condições ou doenças que afetam o cérebro interferissem com livre arbítrio. Acidentes vasculares cerebrais, meningite e deficiência intelectual diminuiriam ou eliminariam a possibilidade de livre arbítrio. Mas, mesmo assumindo que livre arbítrio é possível, essa é uma realidade que até o bom-senso-comum ou o cristianismo reconhece ser falsa. Apenas apelando para um algo mais, fora do cérebro, o livre arbítrio poderia existir.

Se esse algo mais existisse e pudesse ser reproduzido seria a grande descoberta humana: sociopatas poderiam ter empatia porque seria suficiente desejar ter empatia; pedófilos não mais abusariam de crianças porque controlariam seus impulsos; antidepressivos seriam drogas recreativas porque qualquer um poderia sair da depressão; todos os deadlines seriam cumpridos com folga porque ninguém procrastinaria checando seu Facebook; e todos na situação do jovem acorrentado, nascidos na pobreza poderiam romper o ciclo de miséria e criminalidade porque só bastaria força de vontade e não qualquer ajuda externa.

A conveniência do Livre Arbítrio

A noção de que o criminoso ou o pobre sempre têm escolha é a mais cruel defesa do livre arbítrio. Ignora-se que a maioria dos que nascem na pobreza, vive e morre nela. Idolatram-se as exceções que tentam provar que tudo é possível: basta querer, correr atrás, ter força de vontade. O menino pobre, arrimo de família que virou ministro do Supremo. O camelô que construiu um império. Mas e o menino pobre que virou traficante? Ou o que morreu antes dos 20, executado pelo traficante que o viciou? Ou o que aprendeu a ler e escrever e teve, no máximo, um emprego de ascensorista por toda a vida?

Se força de vontade fosse o único fator de ascensão social, a conclusão absurda é que força de vontade ocorre com maior freqüência entre privilegiados do que pobres. Ou, talvez, e misteriosamente, só existe para um grupo seleto de pobres. Ambos, argumentos convenientes para manter o status quo e relinchar diariamente que as bolsas do governo só servem para sustentar vagabundo que fica tendo filho e que cota para negro é discriminação também.

Novamente, e se fosse você que tivesse nascido na pobreza e não existisse bolsa família, nem cota racial para tentar ser o primeiro a estudar além do ensino básico? Você poderia realmente dizer que só força de vontade seria suficiente para uma vida melhor?

Desesperador ou Libertador?

Se o livre arbítrio não existe, se não é possível escolher sem amarras, como é possível viver, ter vontade de obter sucesso e reconhecimento, amar e ter prazer? Se meu esforço para suceder ou falhar foi determinado antes que eu nascesse, ou é completamente imprevisível, por que tomar decisões? Por que se importar com a surra e humilhação de um adolescente desprivilegiado? Ou com qualquer outro evento na vida de qualquer pessoa?

Aceitar a ausência de livre arbítrio não significa o fim da felicidade, de tomar decisões boas ou ruins e nem de sentir prazer. Significa que o futuro é um mistério. Tentamos reduzir a realidade para conseguir prever a chuva ou a seca, a progressão de uma doença, as novas gripes que se espalham a cada inverno, a economia (com a economia não dá certo). Significa também que seus erros passados não poderiam ter acontecido de outra forma. Ou, ainda, que o mérito pessoal de qualquer pessoa, com ou sem esforço, é resultado apenas de circunstâncias favoráveis. Significa que a sua sorte ou falta de sorte não é diferente daquela de nenhuma outra pessoa. E que a crueldade, que existe no caso do desejo de vingança e justiça, poderia ser eliminada se o exercício de se colocar no lugar do outro assumisse a impossibilidade do livre arbítrio para qualquer um, mesmo nos piores casos.


O rapaz amarrado ao poste poderia ser qualquer outro ser humano. Seus genes, sua vida de pobreza, a proximidade com o crime, a falta de opções, a oportunidade e o azar de ser encontrado por justiceiros não poderiam ser evitados. Ainda assim é perfeitamente normal viver assumindo o livre arbítrio e condenar a crueldade de justiceiros ou querer punição para criminosos. Haverá um dia que entenderemos que, mesmo imprevisível, o universo e nossas vidas têm um futuro determinístico? Provavelmente não. Mas o efeito de suspender brevemente a ilusão de controle de nossas vidas nos aproxima daqueles que estão em situações piores que a nossa. Com sorte, podemos ter até compaixão.