2014-01-23

Pílula azul

Origem


Em janeiro de 2004, com 26 anos, iniciei tratamento para depressão clínica. Não acho que a depressão começou aí, mas foi quando tive o primeiro episódio mais grave. Há dez anos percebi que minha apatia, incapacidade de sentir prazer, isolamento social e ansiedade não eram apenas minha personalidade exacerbada temporariamente. Meu cérebro não funcionava mais como eu estava habituado e confiei na medicina moderna para me consertar.

Do que recordo, o diagnóstico não foi demorado. Uma psicóloga, depois um psiquiatra. O tratamento começou com ambos tipos de especialistas. No começo, quase me desesperei ao saber que a medicação só teria algum efeito em seis semanas. Esperar seis semanas para voltar a ter energia e prazer. Seis semanas para o início de um tratamento que eu não sabia o quanto ia durar ou se seria eficaz. Seis semanas para o início de uma recuperação completa ou de tratamento para uma doença crônica?

A medicação foi eficaz no começo. Fiquei mais disposto, conseguia render mais, ter mais clareza nas decisões, ser menos pessimista. Ou não fatalista, ao menos. Mas o Zoloft, minha primeira (e ainda única) pílula azul, tinha um efeito colateral difícil: aumentava minha ansiedade. O que causava dificuldade de concentração e me tornava pouco produtivo. Menos deprimido clinicamente, mas mais ansioso. Soa contraditório: como é possível estar deprimido e ansioso?

Um parêntese para explicar. Depressão, no meu caso e muitos outros, se manifesta menos como tristeza e mais como anedonia, i.e., incapacidade de sentir prazer. Ansiedade tem uma lista de sintomas mais ampla: dificuldade de relaxar, dificuldade de concentração, fadiga, preocupação excessiva, inquietação e tensão muscular são os meus sintomas ordinários.

É melhor ficar mais ansioso e menos deprimido? Por sorte é uma falsa dicotomia. Aumentar ansiedade não é o objetivo de um tratamento para depressão. A solução imediata foi mudar a medicação. Lexapro? Não me recordo exatamente. Muitas outras se seguiram porque a droga anterior não funcionava mais ou tinha efeitos colaterais intoleráveis. Tratei-me com nove psiquiatras e quatro psicólogos (aproximadamente) até o presente. O grau de sucesso foi variável, mas minha depressão nunca foi grave demais e nem me lembro de ter ficado totalmente livre de sintomas. Sei que foi grave o suficiente para colocar minha vida em queda consistente, ainda que com alguns platôs. Não há picos.

Tratamento

Aproximadamente dois meses de medicação.
Os psiquiatras geralmente me agradavam mais com a objetividade e as tentativas de medicação: eu podia sentir os efeitos mais rapidamente. Com os psicólogos, e um psicanalista, eu tentei. Terapia individual, em grupo, lacaniana. Não sentia nenhuma chegar a lugar nenhum. Nunca duvidei que fossem eficazes para uma parte da população, mas, até hoje, não foram para mim. Continuo sem preconceitos com a psicoterapia, mas cansado de tentar. Antidepressivos se tornaram minha rotina contra a qual menos me rebelei.

Mesmo com os antidepressivos modernos, a verdade é que não há pílula da felicidade, solução infalível. Antidepressivos não tem a eficácia de antibióticos. Os efeitos antidepressivos costumam ser sutis, os colaterais, nem sempre. O pessimismo diminui, a disposição aumenta, fica mais fácil sair da cama de manhã. Até a vontade de interagir com outros humanos aumenta (mas os chatos continuam chatos).

Claro que não há free lunch: dor de cabeça, náusea, visão turva. Geralmente esses sintomas não persistem e sobra a dificuldade de ejaculação ou anorgasmia, geralmente sem perda de libido. Mesmo se você não tiver qualquer problema sexual, é sucesso absoluto com a parceira nos primeiros meses e vai te garantir uma boa reputação em one night stands. Até começar a ficar frustrante. Aí só paciência e criatividade para amenizar. Outros antidepressivos melhoram o problema e alguns nem têm esse efeito colateral. Há variedade suficiente para tentar e ver o que funciona.

Para mim, o efeito colateral mais persistente e pervasivo é a ansiedade. Desde uma diminuta dificuldade de concentração a pernas e mandíbulas trepidantes e até ataques de pânico com alterações cardíacas. Da ansiedade só consegui me livrar ficando sem medicação ou com medicação para diminuir a ansiedade, mas que pode causar dependência. Ansioso ou viciado em tarja preta e levemente sedado? É só mais um vício além da Coca Zero, sem drama.

Vivendo

O convívio com a depressão é, no melhor dos mundos, cansativo. Sessões de terapia e consultas com psiquiatras são piece of cake. Tomar uma ou mais medicações todos os dias na mesma hora é frustrante. O massacrante é estar deprimido e nem sempre saber. Ou saber e não fazer qualquer diferença. Depois de alguns anos, estar só um pouco deprimido já é ótimo.

Não chega a ser um vôo cego. Dormir demais, perder compromissos, se afastar de amigos, família e até parceiros. Não se importar com quase nada e ninguém. Baixa libido. Ser pessimista além razoável e não ter nenhuma vontade de tomar sorvete Hagen Dazs sabor Dulce de Leche. Todos sinais de que estou (mais) deprimido. Só que nenhum aparece repentinamente e, apesar dos muitos vídeos no Youtube sobre como detectar os sintomas, é mais fácil que o outro perceba primeiro que você. Mas poucos vão ter a coragem de falar e te convencer do quão na merda você está. Uma pequena demonstração do que costuma ser:

Recebi um elogio de alguém que admiro? - Meh. Meu experimento deu certo e pode dar um belo paper? - Meh. Juliana Paes me passou o telefone e pediu enfaticamente pra eu ligar? - Talvez eu ligue se tiver tempo. Alternativamente:  Recebi um elogio de alguém que admiro? - Será que ela tá sendo sincera? Meu experimento deu certo e pode dar um belo paper? - Nunca vou ter disposição para escrever e submeter. Juliana Paes me passou o telefone e pediu enfaticamente pra eu ligar? - Com certeza é pegadinha do Faustão.

Infelizmente não tive a sorte de precisar tomar a decisão sobre ligar ou não para a Juliana Paes. Na verdade, deixei de tomar muitas decisões ou reagir a boas e más notícias. Quando deprimido, o pessimismo e a indecisão me fazem ser visto como um derrotista e irresponsável. Num dia de sorte, cínico e negligente.

A vida continua? Continua, como o intervalo comercial na TV que você assiste pela promessa de que vem algo melhor depois. Por vezes, diminui o volume e olha para o teto.

Desistir

Por desistir, entenda tanto suicídio quanto apatia. Unicamente para que ninguém me interne: não penso em me suicidar.

O suicídio nunca considerei em detalhes. Só analisei filosoficamente o tema e estou usando filosoficamente lato sensu. Nunca li um teórico do suicídio, só li textos e escutei rock de suicidas.

Há uma objeção ao suicídio quase razoável: o sofrimento que pode causar no outro. Mesmo grandes babacas podem ser bons amantes, pais, irmãos, amigos, mentores. O suicídio é visto, então, como uma agressão egoísta: a dor do outro não importa? Mas e a dor do futuro suicida? Ele deve continuar a sofrer? Ele deve continuar a sofrer para que os outros não sofram por sua morte? Haja altruísmo.

Se o suicídio não é tão comum, a apatia é uma quase regra da depressão. Do simples "xapralá" ao "pra quê mesmo ir pro trabalho e viver essa rotina sem fim". Não via o sentido de começar ou terminar uma atividade. Até comer pode parecer desnecessário: "como na próxima refeição". Nos piores momentos nada me causava qualquer emoção: comédia romântica, filme do Lars Von trier (os mais pesados), massacre de pandas, genocídio em Darfur. E o pior: não conseguia demonstrar emoção para as pessoas. A apatia da depressão o transforma num mini-sociopata temporário, mas sem a disposição ou intenção de prejudicar o outro.

Amanhã

Há uns bons anos não penso mais em futuro como alguém típico da minha idade. A depressão transformou o longo prazo, sonhos e objetivos de vida em futilidade. Não há energia, motivação ou plausibilidade para que eu tente fazer acontecerem. O amanhã literal se torna o possível. Amanhã posso comer um cheesecake. Na próxima semana estarei de férias e poderei ler um pouco mais. Ou dormir. O prazer de curto prazo tem um apelo irresistível.


Soa triste, mas não precisa ser. Seria triste se eu tivesse a ilusão constante de que tenho controle da minha vida. De que existe algo que chamo de "eu", consciência, etc, que tem alguma autonomia sobre meu cérebro para decidir. É uma ilusão até necessária, especialmente para se relacionar socialmente. Mas racionalmente sei que é meu cérebro o responsável por tudo, inclusive a ilusão de que tomo decisões. Não há fantasma na máquina, só a necessidade de alucinar que ele existe.



Mesmo pessimista, é possível que um dia eu melhore de forma semi-permanente. O mais provável é que continue alternando normalidade com depressão leve ou moderada. Continuarei funcional, indo trabalhar, voltando pra casa, mudando o círculo de amigos quando já não me aguentarem. E ouvindo que "se eu realmente quisesse, poderia melhorar." Para muita gente, a maioria, talvez, depressão clínica é só um estado transiente que uma boa conversa, uma cerveja com amigos e um filme gracinha curam instantaneamente. Oxalá fosse, eu poderia ter economizado muito dinheiro. Encaro os encontros com essas pessoas como uma oportunidade inútil de educar os insensíveis com apego superbôndico ao senso comum. Infelizmente é um esporte de gasto calórico negligível.

Deprílogo

Acredita em silver lining? O filme é bom.
E não há nada positivo na depressão? Há quem defenda que há, mas é um assunto polêmico. Tudo indica que seja natural. Como câncer, influenza e Ebola. De quasi-positivo posso dizer que aperfeiçoou algumas habilidades: fingir que está tudo bem (não para todos), perder de vez a ilusão de controle (devia ter lido Freud), ter mais compaixão (conseqüência de não ter a ilusão do controle), amplificar meu cinismo (o efeito parece ser cumulativo). Só não trouxe mulheres, dinheiro e fama.

O que faço com a depressão então? Glorifico e dou um spin positivo? Culpo a genética e o ambiente? Bato com a frente da cabeça na parede algumas vezes (para danificar o córtex pré-frontal) e mergulho nos livros de auto-ajuda? Prefiro a aceitação da condição com a possibilidade de melhora. Na prática: tento não encher o saco de quem me aguenta com meu humor deprimido, tomo um punhado de comprimidos diariamente, vou ao médico e fico tentando fazer exercício físico, mas nunca realmente consigo.

Além de escrever sobre a depressão, pensei em comemorar os 10 anos de diagnóstico com bolo, Bloody Mary, balões pretos, máscaras de palhaço triste e Gloomy Sunday tocando em loop. Seria uma comemoração esquisita pra caralho. Mas nem eu ou os personagens do Hugh Grant têm tanto humor auto depreciativo para uma noitada dessas. Melhor é ir só comer o cheesecake. Com calda de goiaba e doce de leite. A dois. Por muitos anos. Com pílula azul de sobremesa.

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