2014-04-09

E se fosse você?



E se fosse você a pessoa surrada, nua e presa a um poste para humilhação pública? Os defensores da moral preto e branco diriam que seria uma situação impossível: não são ladrões e não fazem coisas erradas para merecer tal castigo. Alguns com essa moral de certezas chegariam a dizer que mereceriam se realmente fossem bandidos. Especialmente porque seria uma possibilidade hipotética, claro. E ambos concordam que quem chamam de marginal, mereceu o castigo.

Há outras categorias de moralismo. Há quem discorde do tratamento dos justiceiros neste caso, mas, se o acorrentado fosse um pedófilo ou estuprador, diriam que mereceria ainda mais. Há ainda quem discorde da justiça das ruas, mas acha que, seguido o processo legal, o homicida, o estuprador e o pedófilo deveriam morrer. Civilizadamente e com a aprovação do Estado. Uma variação menos extrema seria a prisão perpétua. Poucos concordam que 30 anos de prisão para os piores crimes é suficiente. Ainda menos suficientes são os que repudiam e se comovem com o adolescente espancado e amarrado ao poste.

Essas categorias ilustram como o bom-senso-comum prega a punição rígida, às vezes apenas para crimes violentos, às vezes até para o ladrão de hospital, que não foi violento. O desejo de punição severa, dolorosa aumenta com a indignação, com a violência, se o crime foi de natureza sexual, se foi contra pessoas indefesas e ou se houve tortura.

Mas qual o apelo da punição severa, tortura e até morte para alguns criminosos? Diversos, mas escolho um: a possibilidade de escolha. O pressuposto de que quem comete o crime sempre poderia escolher não cometer, mas, por ter decidido ir em frente, merece alguma punição.

Exceções à punição mais severa são fáceis de descartar: o que rouba para comer em situação de desespero e o que apresenta problema mental grave e não é capaz de distinguir entre o certo e errado, entre real e fantasia. Os outros desviantes são vistos num quase contínuo pelo sistema judicial. E, para quase todos, assume-se que a escolha sempre é possível. Outra possível exceção, esta do bom-senso-comum, é a de que os justiceiros também não teriam escolha ao espancar e humilhar um adolescente. Eles estariam, afinal, protegendo a comunidade e se excederam.

Liberdade de escolha

A possibilidade de escolha entre legal e ilegal, entre moral e imoral, justo ou injusto é a premissa essencial para a noção de que seres humanos possuem livre arbítrio. Sem entrar em detalhes de definição, o livre-arbítrio a que me refiro é o que supõe que qualquer pessoa poderia ter tomado uma decisão diferente da que, de fato, tomou, ainda que tenha sido fortemente influenciada. Exemplo: você está solteiro e encontra a Camila Pitanga bebendo um suco de laranja no bar do aeroporto. Conversam, ela não resiste ao seu charme e o resultado é o esperado: ambos perdem o vôo. Seguem para o hotel mais próximo trocando amassos de ruborizar o motorista de táxi com 30 anos de praça e que já viu de tudo. Na hora do check-in, você pode: 1) pedir um só quarto e ter a noite dos seus sonhos; ou 2) pedir quartos separados e despachar a Camila Pitanga porque precisa acordar cedo, o que é mentira. Diz que foi ótimo conhecê-la e que a noite de sexo selvagem fica pra próxima. Acreditar em livre arbítrio é acreditar que a segunda opção é possível.

Livre arbítrio vale tanto para escolhas difíceis como as ordinárias: terminar o casamento de 20 anos ou escolher entre sorvete de pistache ou chocolate belga. Nessas, ou em qualquer outra situação, a escolha pode ser qualquer uma entre as possíveis, e o indivíduo, não estando em situação como a de ter uma arma apontada para a cabeça, supostamente, faz sua escolha livremente.

Escolha ex nihilo?

Ainda que você não acredite em alma, você não é um humano que tem um cérebro. Você é o seu cérebro. Se seu cérebro sofre dano, é alterado por drogas, ou é afetado por um tumor, sua cognição e comportamento se modificam. Decisões que não seguiriam seu padrão são tomadas, i.e., você deixa de ser quem tipicamente era. Exemplo típico é a doença Alzheimer. Pessoas afetadas exibem comportamento errático e até agressivo. Mas é um caso em que, tipicamente, não se reconhece culpabilidade moral, liberdade de escolha, livre-arbítrio. Outras doenças mentais (cerebrais) também têm, parcialmente, o status da perda de autonomia: vício em álcool, drogas e jogo, depressão. Mas como são tratáveis e podem se estabilizar, atribui-se falha de caráter, pouca força de vontade ou preguiça ao indivíduo que não supera essas condições, especialmente quando ele recusa ajuda ou não continua o tratamento.

No entanto, tanto o comportamento do alcoólico quanto da pessoa afetada pela doença de Alzheimer são causados pelo cérebro. No primeiro caso por uma cadeia de eventos que incluem genética, desenvolvimento cerebral e ambiente. No segundo caso, uma doença que degrada o cérebro. E qual seria a diferença entre os dois cérebros, além da doença? Apenas a genética? Apenas o ambiente? Na verdade, ambos fatores para ambos os casos. Qual seria, então, a culpabilidade moral que alguém pode ter por herdar um conjunto desfavorável de genes, ter crescido num ambiente não privilegiado ou ter pais abusivos?


O alcoólico, como qualquer outra pessoa, não escolheu sua genética, ambiente, história. Não escolheu, portanto, o estado do seu cérebro que o tornou um alcoólico. Ainda assim, supostamente pode escolher livremente controlar seus impulsos, largar a dependência. Também a pessoa com Alzheimer não teve escolha em sua genética, ambiente, história. Mas, por ter uma doença que afeta degrada seu cérebro, teria passe livre em seu livre-arbítrio?

Em outros termos: se o livre arbítrio é reduzido a um cérebro saudável, normal, seria esperado que condições ou doenças que afetam o cérebro interferissem com livre arbítrio. Acidentes vasculares cerebrais, meningite e deficiência intelectual diminuiriam ou eliminariam a possibilidade de livre arbítrio. Mas, mesmo assumindo que livre arbítrio é possível, essa é uma realidade que até o bom-senso-comum ou o cristianismo reconhece ser falsa. Apenas apelando para um algo mais, fora do cérebro, o livre arbítrio poderia existir.

Se esse algo mais existisse e pudesse ser reproduzido seria a grande descoberta humana: sociopatas poderiam ter empatia porque seria suficiente desejar ter empatia; pedófilos não mais abusariam de crianças porque controlariam seus impulsos; antidepressivos seriam drogas recreativas porque qualquer um poderia sair da depressão; todos os deadlines seriam cumpridos com folga porque ninguém procrastinaria checando seu Facebook; e todos na situação do jovem acorrentado, nascidos na pobreza poderiam romper o ciclo de miséria e criminalidade porque só bastaria força de vontade e não qualquer ajuda externa.

A conveniência do Livre Arbítrio

A noção de que o criminoso ou o pobre sempre têm escolha é a mais cruel defesa do livre arbítrio. Ignora-se que a maioria dos que nascem na pobreza, vive e morre nela. Idolatram-se as exceções que tentam provar que tudo é possível: basta querer, correr atrás, ter força de vontade. O menino pobre, arrimo de família que virou ministro do Supremo. O camelô que construiu um império. Mas e o menino pobre que virou traficante? Ou o que morreu antes dos 20, executado pelo traficante que o viciou? Ou o que aprendeu a ler e escrever e teve, no máximo, um emprego de ascensorista por toda a vida?

Se força de vontade fosse o único fator de ascensão social, a conclusão absurda é que força de vontade ocorre com maior freqüência entre privilegiados do que pobres. Ou, talvez, e misteriosamente, só existe para um grupo seleto de pobres. Ambos, argumentos convenientes para manter o status quo e relinchar diariamente que as bolsas do governo só servem para sustentar vagabundo que fica tendo filho e que cota para negro é discriminação também.

Novamente, e se fosse você que tivesse nascido na pobreza e não existisse bolsa família, nem cota racial para tentar ser o primeiro a estudar além do ensino básico? Você poderia realmente dizer que só força de vontade seria suficiente para uma vida melhor?

Desesperador ou Libertador?

Se o livre arbítrio não existe, se não é possível escolher sem amarras, como é possível viver, ter vontade de obter sucesso e reconhecimento, amar e ter prazer? Se meu esforço para suceder ou falhar foi determinado antes que eu nascesse, ou é completamente imprevisível, por que tomar decisões? Por que se importar com a surra e humilhação de um adolescente desprivilegiado? Ou com qualquer outro evento na vida de qualquer pessoa?

Aceitar a ausência de livre arbítrio não significa o fim da felicidade, de tomar decisões boas ou ruins e nem de sentir prazer. Significa que o futuro é um mistério. Tentamos reduzir a realidade para conseguir prever a chuva ou a seca, a progressão de uma doença, as novas gripes que se espalham a cada inverno, a economia (com a economia não dá certo). Significa também que seus erros passados não poderiam ter acontecido de outra forma. Ou, ainda, que o mérito pessoal de qualquer pessoa, com ou sem esforço, é resultado apenas de circunstâncias favoráveis. Significa que a sua sorte ou falta de sorte não é diferente daquela de nenhuma outra pessoa. E que a crueldade, que existe no caso do desejo de vingança e justiça, poderia ser eliminada se o exercício de se colocar no lugar do outro assumisse a impossibilidade do livre arbítrio para qualquer um, mesmo nos piores casos.


O rapaz amarrado ao poste poderia ser qualquer outro ser humano. Seus genes, sua vida de pobreza, a proximidade com o crime, a falta de opções, a oportunidade e o azar de ser encontrado por justiceiros não poderiam ser evitados. Ainda assim é perfeitamente normal viver assumindo o livre arbítrio e condenar a crueldade de justiceiros ou querer punição para criminosos. Haverá um dia que entenderemos que, mesmo imprevisível, o universo e nossas vidas têm um futuro determinístico? Provavelmente não. Mas o efeito de suspender brevemente a ilusão de controle de nossas vidas nos aproxima daqueles que estão em situações piores que a nossa. Com sorte, podemos ter até compaixão.

2014-01-23

Pílula azul

Origem


Em janeiro de 2004, com 26 anos, iniciei tratamento para depressão clínica. Não acho que a depressão começou aí, mas foi quando tive o primeiro episódio mais grave. Há dez anos percebi que minha apatia, incapacidade de sentir prazer, isolamento social e ansiedade não eram apenas minha personalidade exacerbada temporariamente. Meu cérebro não funcionava mais como eu estava habituado e confiei na medicina moderna para me consertar.

Do que recordo, o diagnóstico não foi demorado. Uma psicóloga, depois um psiquiatra. O tratamento começou com ambos tipos de especialistas. No começo, quase me desesperei ao saber que a medicação só teria algum efeito em seis semanas. Esperar seis semanas para voltar a ter energia e prazer. Seis semanas para o início de um tratamento que eu não sabia o quanto ia durar ou se seria eficaz. Seis semanas para o início de uma recuperação completa ou de tratamento para uma doença crônica?

A medicação foi eficaz no começo. Fiquei mais disposto, conseguia render mais, ter mais clareza nas decisões, ser menos pessimista. Ou não fatalista, ao menos. Mas o Zoloft, minha primeira (e ainda única) pílula azul, tinha um efeito colateral difícil: aumentava minha ansiedade. O que causava dificuldade de concentração e me tornava pouco produtivo. Menos deprimido clinicamente, mas mais ansioso. Soa contraditório: como é possível estar deprimido e ansioso?

Um parêntese para explicar. Depressão, no meu caso e muitos outros, se manifesta menos como tristeza e mais como anedonia, i.e., incapacidade de sentir prazer. Ansiedade tem uma lista de sintomas mais ampla: dificuldade de relaxar, dificuldade de concentração, fadiga, preocupação excessiva, inquietação e tensão muscular são os meus sintomas ordinários.

É melhor ficar mais ansioso e menos deprimido? Por sorte é uma falsa dicotomia. Aumentar ansiedade não é o objetivo de um tratamento para depressão. A solução imediata foi mudar a medicação. Lexapro? Não me recordo exatamente. Muitas outras se seguiram porque a droga anterior não funcionava mais ou tinha efeitos colaterais intoleráveis. Tratei-me com nove psiquiatras e quatro psicólogos (aproximadamente) até o presente. O grau de sucesso foi variável, mas minha depressão nunca foi grave demais e nem me lembro de ter ficado totalmente livre de sintomas. Sei que foi grave o suficiente para colocar minha vida em queda consistente, ainda que com alguns platôs. Não há picos.

Tratamento

Aproximadamente dois meses de medicação.
Os psiquiatras geralmente me agradavam mais com a objetividade e as tentativas de medicação: eu podia sentir os efeitos mais rapidamente. Com os psicólogos, e um psicanalista, eu tentei. Terapia individual, em grupo, lacaniana. Não sentia nenhuma chegar a lugar nenhum. Nunca duvidei que fossem eficazes para uma parte da população, mas, até hoje, não foram para mim. Continuo sem preconceitos com a psicoterapia, mas cansado de tentar. Antidepressivos se tornaram minha rotina contra a qual menos me rebelei.

Mesmo com os antidepressivos modernos, a verdade é que não há pílula da felicidade, solução infalível. Antidepressivos não tem a eficácia de antibióticos. Os efeitos antidepressivos costumam ser sutis, os colaterais, nem sempre. O pessimismo diminui, a disposição aumenta, fica mais fácil sair da cama de manhã. Até a vontade de interagir com outros humanos aumenta (mas os chatos continuam chatos).

Claro que não há free lunch: dor de cabeça, náusea, visão turva. Geralmente esses sintomas não persistem e sobra a dificuldade de ejaculação ou anorgasmia, geralmente sem perda de libido. Mesmo se você não tiver qualquer problema sexual, é sucesso absoluto com a parceira nos primeiros meses e vai te garantir uma boa reputação em one night stands. Até começar a ficar frustrante. Aí só paciência e criatividade para amenizar. Outros antidepressivos melhoram o problema e alguns nem têm esse efeito colateral. Há variedade suficiente para tentar e ver o que funciona.

Para mim, o efeito colateral mais persistente e pervasivo é a ansiedade. Desde uma diminuta dificuldade de concentração a pernas e mandíbulas trepidantes e até ataques de pânico com alterações cardíacas. Da ansiedade só consegui me livrar ficando sem medicação ou com medicação para diminuir a ansiedade, mas que pode causar dependência. Ansioso ou viciado em tarja preta e levemente sedado? É só mais um vício além da Coca Zero, sem drama.

Vivendo

O convívio com a depressão é, no melhor dos mundos, cansativo. Sessões de terapia e consultas com psiquiatras são piece of cake. Tomar uma ou mais medicações todos os dias na mesma hora é frustrante. O massacrante é estar deprimido e nem sempre saber. Ou saber e não fazer qualquer diferença. Depois de alguns anos, estar só um pouco deprimido já é ótimo.

Não chega a ser um vôo cego. Dormir demais, perder compromissos, se afastar de amigos, família e até parceiros. Não se importar com quase nada e ninguém. Baixa libido. Ser pessimista além razoável e não ter nenhuma vontade de tomar sorvete Hagen Dazs sabor Dulce de Leche. Todos sinais de que estou (mais) deprimido. Só que nenhum aparece repentinamente e, apesar dos muitos vídeos no Youtube sobre como detectar os sintomas, é mais fácil que o outro perceba primeiro que você. Mas poucos vão ter a coragem de falar e te convencer do quão na merda você está. Uma pequena demonstração do que costuma ser:

Recebi um elogio de alguém que admiro? - Meh. Meu experimento deu certo e pode dar um belo paper? - Meh. Juliana Paes me passou o telefone e pediu enfaticamente pra eu ligar? - Talvez eu ligue se tiver tempo. Alternativamente:  Recebi um elogio de alguém que admiro? - Será que ela tá sendo sincera? Meu experimento deu certo e pode dar um belo paper? - Nunca vou ter disposição para escrever e submeter. Juliana Paes me passou o telefone e pediu enfaticamente pra eu ligar? - Com certeza é pegadinha do Faustão.

Infelizmente não tive a sorte de precisar tomar a decisão sobre ligar ou não para a Juliana Paes. Na verdade, deixei de tomar muitas decisões ou reagir a boas e más notícias. Quando deprimido, o pessimismo e a indecisão me fazem ser visto como um derrotista e irresponsável. Num dia de sorte, cínico e negligente.

A vida continua? Continua, como o intervalo comercial na TV que você assiste pela promessa de que vem algo melhor depois. Por vezes, diminui o volume e olha para o teto.

Desistir

Por desistir, entenda tanto suicídio quanto apatia. Unicamente para que ninguém me interne: não penso em me suicidar.

O suicídio nunca considerei em detalhes. Só analisei filosoficamente o tema e estou usando filosoficamente lato sensu. Nunca li um teórico do suicídio, só li textos e escutei rock de suicidas.

Há uma objeção ao suicídio quase razoável: o sofrimento que pode causar no outro. Mesmo grandes babacas podem ser bons amantes, pais, irmãos, amigos, mentores. O suicídio é visto, então, como uma agressão egoísta: a dor do outro não importa? Mas e a dor do futuro suicida? Ele deve continuar a sofrer? Ele deve continuar a sofrer para que os outros não sofram por sua morte? Haja altruísmo.

Se o suicídio não é tão comum, a apatia é uma quase regra da depressão. Do simples "xapralá" ao "pra quê mesmo ir pro trabalho e viver essa rotina sem fim". Não via o sentido de começar ou terminar uma atividade. Até comer pode parecer desnecessário: "como na próxima refeição". Nos piores momentos nada me causava qualquer emoção: comédia romântica, filme do Lars Von trier (os mais pesados), massacre de pandas, genocídio em Darfur. E o pior: não conseguia demonstrar emoção para as pessoas. A apatia da depressão o transforma num mini-sociopata temporário, mas sem a disposição ou intenção de prejudicar o outro.

Amanhã

Há uns bons anos não penso mais em futuro como alguém típico da minha idade. A depressão transformou o longo prazo, sonhos e objetivos de vida em futilidade. Não há energia, motivação ou plausibilidade para que eu tente fazer acontecerem. O amanhã literal se torna o possível. Amanhã posso comer um cheesecake. Na próxima semana estarei de férias e poderei ler um pouco mais. Ou dormir. O prazer de curto prazo tem um apelo irresistível.


Soa triste, mas não precisa ser. Seria triste se eu tivesse a ilusão constante de que tenho controle da minha vida. De que existe algo que chamo de "eu", consciência, etc, que tem alguma autonomia sobre meu cérebro para decidir. É uma ilusão até necessária, especialmente para se relacionar socialmente. Mas racionalmente sei que é meu cérebro o responsável por tudo, inclusive a ilusão de que tomo decisões. Não há fantasma na máquina, só a necessidade de alucinar que ele existe.



Mesmo pessimista, é possível que um dia eu melhore de forma semi-permanente. O mais provável é que continue alternando normalidade com depressão leve ou moderada. Continuarei funcional, indo trabalhar, voltando pra casa, mudando o círculo de amigos quando já não me aguentarem. E ouvindo que "se eu realmente quisesse, poderia melhorar." Para muita gente, a maioria, talvez, depressão clínica é só um estado transiente que uma boa conversa, uma cerveja com amigos e um filme gracinha curam instantaneamente. Oxalá fosse, eu poderia ter economizado muito dinheiro. Encaro os encontros com essas pessoas como uma oportunidade inútil de educar os insensíveis com apego superbôndico ao senso comum. Infelizmente é um esporte de gasto calórico negligível.

Deprílogo

Acredita em silver lining? O filme é bom.
E não há nada positivo na depressão? Há quem defenda que há, mas é um assunto polêmico. Tudo indica que seja natural. Como câncer, influenza e Ebola. De quasi-positivo posso dizer que aperfeiçoou algumas habilidades: fingir que está tudo bem (não para todos), perder de vez a ilusão de controle (devia ter lido Freud), ter mais compaixão (conseqüência de não ter a ilusão do controle), amplificar meu cinismo (o efeito parece ser cumulativo). Só não trouxe mulheres, dinheiro e fama.

O que faço com a depressão então? Glorifico e dou um spin positivo? Culpo a genética e o ambiente? Bato com a frente da cabeça na parede algumas vezes (para danificar o córtex pré-frontal) e mergulho nos livros de auto-ajuda? Prefiro a aceitação da condição com a possibilidade de melhora. Na prática: tento não encher o saco de quem me aguenta com meu humor deprimido, tomo um punhado de comprimidos diariamente, vou ao médico e fico tentando fazer exercício físico, mas nunca realmente consigo.

Além de escrever sobre a depressão, pensei em comemorar os 10 anos de diagnóstico com bolo, Bloody Mary, balões pretos, máscaras de palhaço triste e Gloomy Sunday tocando em loop. Seria uma comemoração esquisita pra caralho. Mas nem eu ou os personagens do Hugh Grant têm tanto humor auto depreciativo para uma noitada dessas. Melhor é ir só comer o cheesecake. Com calda de goiaba e doce de leite. A dois. Por muitos anos. Com pílula azul de sobremesa.

2014-01-07

Se Renan Calheiros tivesse coragem de ficar careca

O último abuso do nada excelente presidente do Senado, Renan Calheiros, foi usar um avião da FAB para ir de Brasília a Recife fazer implante capilar. Claro que ninguém dá a menor pelota para o implante. Quem o vê com freqüência, no máximo, talvez dê algumas risadas. O minimamente notável para comentário é o abuso de poder e a suposta declaração falsa de que a viagem era a serviço quando requisitou a carona.

Na verdade, nem a irregularidade chega ser notável por ser corriqueira no Brasil. Possivelmente revoltante, mas esse tipo de abuso já é tão periodicamente divulgado que cidadão já foi dessensibilizado. E ele devolveu o dinheiro no final, né? Com valores foram calculados pela Força Aérea Brasileira, mas desconfio não incluem a taxa de conveniência de poder solicitar um avião a qualquer momento para fins particulares (talvez a Comissão de ética do Senado pudesse calcular essa taxa). A história vai morrer, e não deve existir punição ou reprimenda ao senador. Talvez se a história envolvesse prostitutas de luxo, drogas e vídeos talvez ganhasse mais umas duas semanas de atenção.

Se a irregularidade virou banal e sem graça, o dinheiro gasto poderia ter algum benefício social. E se Renan Calheiros assumisse a careca e doasse o dinheiro? E se doasse os R$ 27.390,25 da carona de avião oficial mais o custo da operação? Arredondando pra baixo, deve ser uns 40 mil reais no total. Nenhuma fortuna, mas fiquei pensando em coisas que poderiam ser mais úteis, prazerosas ou interessantes que o cabelo implantado do Renan Calheiros. Por exemplo:

  • 130 bolsas família no valor máximo do benefício de R$ 306 reais. Mais de 10 anos de benefício para uma família. No mínimo uma geração de uma família teria alguma chance de romper o ciclo da pobreza. 
  • 40 aparelhos de ar condicionado suficiente para um quarto (sem instalação e frete). O calor não tá fácil e seriam 40 famílias mais felizes.
  • 2366 assinaturas básicas da Netflix. Muito mais divertido que a TV Senado. Melhor pra saúde mental que o Jornal Nacional.
  • 571 garrafas de vodka Absolut ou umas vinte mil latas de cerveja Skol. Novamente, muito mais felicidade gerada que o novo penteado do Renan Calheiros.
  • 10 passagens Brasília-Shangai só de ida. Já seria um começo para a moralização do congresso brasileiro.
  • 1142 rodízios de pizza. Suficiente para cada congressista ir duas vezes.
O universo de possibilidades é quase tão grande quanto a falta ética do presidente do Senado, mas poderia ser o começo de uma redenção para Renan Calheiros e colegas que seguissem a sugestão. Congressista rico não falta no Brasil. E se for pra sonhar, quem sabe um dia teremos um servidor público como o ex-prefeito da cidade de Nova York, Michael Bloomberg, que gastou 650 milhões de dólares de sua fortuna pessoal com despesas do cargo.

2013-09-18

Eu e elas

Quando rompi com CC, a relação já tinha muitos anos, estávamos unidos desde a minha primeira infância. Meus pais dizem que gostei dela desde o início: adoração completa, uma sede de quero mais. Nessa inseparabilidade, estivemos juntos até meu último ano na universidade. Talvez alguns casamentos durem mais que isso, mas e daí? Para mim, foi uma eternidade. Sempre achei que nunca iria desistir dela, que ela me acompanharia onde eu estivesse, em qualquer situação.

O rompimento não foi brusco nem bem delimitado temporalmente. Talvez porque nenhum acontecimento extraordinário tenha precipitado o fim. Também não houve um fim antecipadamente anunciado. Nem drama intenso, nem sofrimento prolongado. Lembro que não era falta de desejo. Aconteceu que me dei conta de que a relação não seria eterna, não teria nem um longo prazo. Estava entrando em um novo ciclo de vida e ela precisava ficar para trás. Tentei não pensar demais no fim, não avaliar prós e contras. Ainda que o vínculo fosse antigo, o resto da minha vida era mais importante. Iria acabar, precisava acabar.

Nos primeiros dias, a falta dela era visível. Precisei de um autocontrole que nunca tinha praticado. Tragicamente, o autocontrole faltava por culpa dela, que estava sempre ao meu lado e era também minha fonte principal de autocontrole. Sinuca de bico, catch 22, tudo indicava que nosso rompimento não aconteceria. Muitos amigos disseram que eu não conseguiria, que meu apego a ela era forte demais. Minha fraqueza por CC sempre foi ululante e assumida.

A solução foi trocá-la por uma mais nova. Uma prima mais nova de CC! Por tradição familiar ainda tinham o primeiro mesmo nome: meu futuro seria com CZ. Talvez tenham dito que eu era insano, fora da casinha mesmo. Para mim era natural. Se fosse um matemático, desenvolveria uma lógica para me justificar. A semelhança física entre CC e CZ ajudou. A cintura fina de CZ fez um mundo de diferença. A novidade e a beleza exótica fecharam o pacote. Era um rompimento, mas sem vandalismo.

Os clichês foram inevitáveis. Tive recaídas com a ex e senti uma culpa cristã que nunca tive. Não eram diárias e eu tentava me justificar. Culpei os dias de calor, quando CC aparecia onde eu estivesse com suas curvas e toda de vermelho: única e inebriante. Cintura fina e corpo de modelo eram uma delícia também, mas as curvas de CC tiram muita gente do sério. Era penoso tentar ser a exceção. CC sabia da prima, que também sabia do desejo que CC me despertava. CC sabia que hábitos antigos são difíceis de superar e, na sua autoconfiança inabalável, sabia que eu vacilaria de vez em quando. A prima CZ, ainda que pudesse estar insegura, sabia do meu comprometimento com a mudança. Mas sabia também que, por ser mais nova em minha vida, eu iria precisar de um tempo até me sentir conquistado. 

Pensei até em ter o melhor dos dois mundos. Às vezes as curvas e a intensidade de CC, em outras, o corpo ideal de CZ e uma suavidade que me fazia querer sempre mais. Mas eu sabia que seria uma atitude covarde, uma infidelidade que teria de justificar socialmente a todo momento. A ex precisava ficar na memória, eu precisava chegar a um estado que não cedesse ao desejo, que não precisasse nem resistir. Em mais uma estratégia para me afastar de CC, conheci outras. Experimentei bastante, repetidamente com algumas até. Talvez uma terceira que não fosse relacionada às duas primas me ajudasse a superar a ex. Algumas tinham as curvas de CC, outras aproximavam o ideal de magreza de CZ, mas nenhuma me despertava um desejo que eu sentisse ser duradouro. Foram passatempos.

A mudança aconteceu. Em alguns meses, já estava completamente habituado e desejando intensamente CZ. Mesmo nos dias quentes, ela já ficava deliciosa em seu pretinho básico. A ausência de curvas era uma saudade, mas dessas que não dura mais que dois segundos e meio. Não era que eu já me considerava um entusiasta das retas, mas na minha nova vida era mandatório que eu estivesse longe de CC para ser mais saudável. As curvas haviam ficado no retrovisor, as retas se estendiam no limite do horizonte.

A relação com CZ já dura muitos anos. Já é sólida, íntima e ainda com aquele gosto de que nunca irá acabar. Objetivamente sei que é uma improbabilidade, mas nem penso em alternativas. Ainda assim, sou humano e às vezes preciso de YOLO (You Only Live Once). Não são encontros planejados, nem me causam mais culpa. Nos piores dias do verão, os encontros ocasionais com CC, sempre de vermelho, refrescam a minha memória e meu desejo. Com CC, sempre ao meu alcance, revivo o passado de prazeres. Agora, o que era uma dificuldade em abandonar o passado tornou-se o eventual delicioso, exótico e não planejado. A eternidade não era possível com CC, mas minha vida com CZ ainda é as good as it gets

Quase hora do almoço e já começo a pensar no encontro habitual com CZ. É um dia mais frio que o normal e a lembrança de CC não deveria ter retornado. Mas não quero que a excepcionalidade seja previsível. Hoje vai ser Coca Cola, não Coca Zero.

2013-07-03

Mudança? Não para nós.

"Há uma quantidade infinita de esperança no universo... mas não para nós" - Franz Kafka

Estive em silêncio essas semanas enquanto o Brasil saía às ruas. Os motivos eu só tenho post hoc: não gostar de fazer previsões sem dados, não ter participado diretamente das manifestações (tenho alergia a vinagre), não ser uma luta particular minha (pode me chamar de egoísta). Inicialmente tive a impressão de que alguma coisa pudesse mudar ou uma mudança forçada talvez pudesse acontecer. Uma vaga esperança, mesmo com meu pessimismo persistente.

Mas hoje despertei após uma noite de sonhos inquietantes sentindo as costas tão duras que pareciam revestidas de metal. Abri uma página de notícias na internet e a realidade me jogou na cara que mandaram cancelar a esperança. Mesmo com todas as manifestações populares, o presidente da câmara dos deputados, o terceiro na sucessão presidencial, esfrega na cara do contribuinte que não está nem aí para moralidade, para o uso responsável do dinheiro público e usa um jato da Força Aérea Brasileira para ir de Natal ao Rio de Janeiro com família e amigos assistir à final da Copa da Confederações 2013. 

Após a denúncia da imprensa, e unicamente porque a farra se tornou pública, o deputado Henrique Alves declara que irá ressarcir o contribuinte com o valor das passagens. Posso imaginar como será a devolução: pelo preço da passagem promocional mais barata entre Natal e Rio de Janeiro em baixa temporada e paga com muita antecedência. Ou alguém imagina que será o custo de deslocamento do jato para Natal depois Rio, de volta a Natal e de volta para onde o jato estava, já incluindo o salário do piloto e tripulação. Henrique Alves tenta ainda justificar a viagem como se fosse para uma suposta reunião de trabalho no Rio de Janeiro no sábado. Na mais surpreendente das coincidências, a reunião aconteceu na véspera do jogo que foi assistir. Como já ia mesmo, uma carona não pareceu ser um problema.

Essencialmente, Henrique Alves está colocando cada contribuinte de quatro e metendo sem lubrificante. Está mostrando pra quem quiser que o Brasil do privilégio, do "manda quem pode, obedece quem tem juízo" continua sem qualquer tentativa de acobertamento. Não houve equívoco ou descuido. Não foi erro inocente. Houve claro e deliberado planejamento para usufruir do dinheiro público para seu prazer pessoal. Foi a resposta do presidente do congresso às manifestações. Com a crueldade adicional da exibição pública, por seus amigos e familiares, de fotos em redes sociais exibindo publicamente a felicidade de estar assistindo ao jogo sem pagar a passagem.

Cidadão brasileiro esperando a sua vez.

Se alguma punição ao deputado irá acontecer eu não sei, mas poucos acreditam que vai. O deputado Henrique Alves só o fez porque sabia que nada aconteceria. Sabia que não teria seu pedido negado ou questionado. Estava plenamente consciente do ato, do seu poder de pedir e ser atendido no mais absurdo dos pedidos. Quem recebeu o pedido não o contestou. Quem atendeu ao pedido não contestou. Quem pilotou o avião e viu família e amigos do deputado entrando obedeceu as ordens cegamente. Nenhum dos funcionários que souberam do fato denunciou publicamente o acontecimento.

Num mundo ideal, o deputado seria forçado a renunciar da presidência e de seu mandato (por vontade própria, nem no mundo ideal) e sua carreira política viraria história a ser esquecida. Mas sou pragmático e vou dar algumas sugestões, ainda que utópicas:

1 - O povo sair às ruas e pedir a renúncia de Henrique Alves. Entendo se não rolar porque os manifestantes já estão cansados. Mas poderia ser uma renovação de pauta.

2 - A presidenta pedir a renúncia de Henrique Alves. "Aí seria interferência do Executivo no Legislativo!", gritariam os puristas. Mas o Executivo já controla o legislativo e seria por um bem maior. Como provavelmente um pedido não daria certo, teria de ser uma chantagem do tipo "o mandato ou os cargos ocupados pelo PMDB até o milésimo escalão do Executivo Federal".

3 - Os outros deputados abrirem processo de cassação contra Henrique Alves. O governo teria de dar algum apoio e poderia ser uma boa oportunidade da presidenta ganhar popularidade. 

Todas são possibilidades teóricas. O que desanima é que será necessário um suplente assumir a vaga e um novo presidente do congresso ser eleito. A sensação de que o ciclo continua é inevitável. Idéias como guilhotina vêm à cabeça (não resisti). Reforma política com aplicação só em 2016 deixa qualquer um sem esperança. Fazer o quê, então?

É preciso concentrar esforços. Sonhar que um dia teremos uma população educada o suficiente para achar que obedecer quem é indicado/eleito é completamente irracional. Sonhar com um dia em que representação política não será uma profissão com aposentadoria especial, mas apenas a dedicação temporária de um cidadão para representar outros pelo bem comum.

A educação no Brasil está melhorando e deve continuar a melhorar. Mas vai demorar. Duas gerações, meio século, por baixo. Já o modo de representação política pode mudar quase instantaneamente. É preciso tirar o dinheiro da política. Possibilitar que o cidadão não-milionário e não vendido possa ser eleito. Financiar as campanhas políticas exclusivamente com o dinheiro público. Vai custar um bilhão? Dez bilhões? É uma conta muito mais barata para o contribuinte que ter representantes corruptos fantoches de empresas e do 1% mais rico.

Se não der certo, o Brasil tem aço suficiente pra muita guilhotina.

2013-06-12

Dilma Roussef e o estilo de gerência da burocracia brasileira

Matéria bonitinha (e ordinária) da Folha de São Paulo fala das visitas da presidenta Dilma Roussef à cabine do avião da presidência da república. Segundo a reportagem, a presidenta, por não gostar de turbulência em seus vôos, palpita sobre a rota do avião, quer saber sobre os instrumentos, cartas meteorológicas, formato das nuvens e tudo mais. E quando, ainda assim, o vôo tem alguma turbulência, aciona um botão para avisar ao comandante do vôo que não gostou do sacolejo: uma bronca eletrônica. No fim, até o comandante, o tenentente-brigadeiro-do-ar Francisco Joseli Parente Camelo, ri (amareladamente?) das exigências da presidenta. Como não rir? Ela é mandona mesmo, é o estilo dela, né?

Um observador externo, e que desconhecesse a burocracia brasileira e sua história, poderia pensar que o comportamento da presidenta é uma excentricidade, um caso isolado, um traço de personalidade. Espantosamente, uma jornalista que comenta sobre política no Brasil dá o mesmo tratamento de exceção. A única diferença é que a jornalista, para não perder a sua viagem, lembra que as viagens da presidenta custam mais para o contribuinte. Mas essa ressalva ao comportamento provavelmente nem vai gerar indignações ou uma resposta da presidência da república. Nem mesmo eu vou dar qualquer pelota para o gasto maior. Talvez até conseguisse defender a presidenta se ganhasse para isso. O mais relevante no comportamento supostamente atípico da presidenta é o que ele representa, o que ele exemplifica.

Para entender o que o comportamento exótico da presidenta, mas aceitável, representa, vamos continuar com a perspectiva do observador externo. O piloto do avião é um oficial de carreira da aeronáutica e no topo da hierarquia meritória (ou quase lá). É um piloto experiente a quem se confia a integridade física da presidenta, ministros, secretários de estado, assessores (o próprio piloto tem o cargo de secretário de estado). Seu treinamento e carreira custou milhões de reais ao contribuinte. Possui os requisitos de competência, experiência e responsabilidade para o cargo. Ainda assim, ele é micro-gerenciado por uma chefe sabichona e tratado, essencialmente, como o estagiário que vira o bode expiatório quando qualquer problema besta acontece (a turbulência).

Já a presidenta sabichona que não gosta de ser contrariada e, justificada por um suposto estilo pessoal (se ela não tivesse um cargo seria "gênio difícil"), prefere desconsiderar todas as qualificações do comandante do avião oficial porque "não gosta de turbulência". Não é suficiente ter pedido uma ou duas vezes que ele, por favor, tentasse evitar turbulências. É necessário verificar pessoalmente o que ele está fazendo para evitar turbulências. Alternativas como deixar pra lá a turbulência, como ela fazia quando não usava avião oficial, não são mais uma possibilidade. Que tal um calmante para relaxar ou fazer uma terapia para superar o medo de turbulência? Sem chance. Mais fácil mandar porque pode mandar, independente de conhecimento técnico, do ônus para o contribuinte, da qualificação do piloto. E como o cargo do piloto não depende só de qualificações, é fácil arranjar outro que queira ter um salário que supera o da presidenta. O capricho de não arriscar que o suco de laranja respingue no terninho é o que importa. Objetivamente, o observador externo só poderia concluir que a situação é alucinatória. Um Machado de Assis ou um Jorge Luis Borges conseguiriam extrair um bom conto sem precisar exagerar.

Mas no contexto da burocracia brasileira, o que parece surreal torna-se banal. Ainda que seja, talvez, um traço de personalidade de Dilma Roussef, seu comportamento autoritário só é possível porque comportamentos similares sempre foram aceitos, tolerados e comuns desde muito antes de Dilma se tornar presidenta. Se os modelos e práticas profissionais ao seu redor mostram que é possível, e talvez até mais efetivo, ser autoritária, por que se reprimir? Por que mudar? Para quê considerar, respeitar a competência do outro? Mais fácil exigir que seja sempre do meu jeito, sem contestação. De quebra ainda dá uma publicidade gratuita para o governo.

Transparência pública, accountability, gestão para resultados, meritocracia. Tudo gracinha e super-duper moderno. Dá a aparência que o o Estado brasileiro está mais profissional. Talvez o contribuinte até acredite. Mas nas relações de trabalho, o que acontece, e que se espera que aconteça, é secretária servir café e marcar consulta médica particular, motorista levar esposa de juiz ao shopping com carro do tribunal, secretário de estado usar carro oficial para ir à academia, juiz morar em apartamento funcional de mais de 400 metros quadrados. O que importa, que dá resultado, são os favores prestados e cobrados, os privilégios do cargo. A hierarquia, mesmo entre os servidores civis, ainda é vista como uma relação entre patrão e empregado, não como de colaboradores com diferentes responsabilidades e que trabalham pelo bem público. Um ditado idiótico, e repetida ad nauseam na administração pública brasileira, sintetiza essa tradição: "Manda quem pode, obedece quem tem juízo".

Imagino que tipo de revolução precisará ocorrer no Brasil para que as relações de poder não sejam abusivas. No meu idealismo, sonho com uma revolução da massa dos servidores públicos que não mais aceitam a hierarquia tradicional, as arbitrariedades, o sistema da troca de favor, do jeitinho para o amigo do rei. Uma Revolução pacífica com as armas substituídas por carimbos (tinta vermelha?).

Mas a realidade é que a arma do status quo para se manter é muito mais poderosa: dinheiro. Há cargos comissionados o bastante na administração federal para comprar cumplicidade: seja para os que ocupam os cargos, sejam para aqueles que desejam ocupar os cargos. O dinheiro, mesmo temporário, compra idealismo, compra vontade de mudança, compra silêncio.

E nunca muda? Talvez mude. Devagar. Por pressões externas, por atos isolados e até mudança cultural. Mas a vida é curta e imprevisível. Esperar cansa, é tedioso.

Então eu esperneio, discordo e critico. Lembro que estar vivo é uma improbabilidade estatística. Que o improvável também acontece*. E tentar mudar pode ser divertido, ainda que desajuizado.

Meu cabelo tá quase lá!

* Não me interpretem como um defensor da loteria. Só jogue na mega-sena se você deseja pagar mais imposto.