2012-02-29

O dicionário, o MPF e a realidade

A imprensa noticiou recentemente (e. g. Folha.com e Estadão) que o Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação para retirar de circulação o dicionário Houaiss. O motivo: o verbete 'cigano' lista acepções que seriam "pejorativas e preconceituosas" e, portanto, praticaria racismo contra ciganos.

Começo com uma admissão de ignorância: não sabia que cigano era sinônimo para "aquele que trapaceia, velhaco". Provavelmente porque nunca morei em lugares com qualquer quantidade visível de ciganos e porque não tenho qualquer interesse pelo tema. Difícil imaginar uma situação em que procuraria a palavra 'cigano' no dicionário. Mas se eu procurasse, o que aconteceria? Segundo o procurador Cléber Eustáquio Neves, segundo a citação do Estadão, eu poderia virar um pessoa preconceituosa instantaneamente:

"Trata-se de um dicionário. Ninguém duvida da veracidade do que ali encontra. Sequer questiona. Aquele sentido, extremamente pejorativo, será internalizado, levando à formação de uma postura interna pré-concebida em relação a uma etnia que deveria, por força de lei, ser respeitada."

Mas voltemos atrás um pouco. Imagino que seja óbvio para (quase) qualquer pessoa que um dicionário apenas registra significados que as palavras costumam ter. É um registro imperfeito, parcial, uma aproximação tanto das palavras que os falantes usam quanto dos significados que os falantes de português têm das palavras. Palavras e significados não surgem de um dicionário, apenas ficam registrados nele. Um dicionário decente, e o Houaiss tem boa reputação, não é uma ferramenta para emitir juízo moral sobre as palavras da língua ou seu uso. Palavras e seus significados são incluídos, essencialmente, com base na freqüência de uso acumulado, especialmente do uso escrito culto da língua. Justamente por ser um registro de uso acumulado, esse registro acaba sendo histórico: palavras geralmente são acrescidas a dicionários, quase nunca retiradas. No máximo indica-se que é uma palavra ou uma acepção arcaica, em desuso. Um dicionário é, em essência, como uma lista telefônica absurda que acumulasse todos os telefones e endereços das pessoas durante a sua vida e que não eliminasse nem os nomes das pessoas que já morreram.

No entanto, para o procurador Neves, o dicionário é muito mais que as quase-obviedades que descrevi. É um registro capaz de alterar a realidade e o cérebro daquele que ousar consultá-lo porque "Ninguém duvida da veracidade do que ali encontra. Sequer questiona." De fato, não há porquê duvidar/questionar um bom dicionário: alguém vai contestar o que zwingliano significa? O suposto efeito da leitura do dicionário é que seria possivelmente devastador: "Aquele sentido, extremamente pejorativo, será internalizado, levando à formação de uma postura interna pré-concebida em relação a uma etnia [...]"


A suposta internalização de sentido tem dois aspectos a serem analisados: o da plausibilidade e o da realidade.

É plausível/possível que a leitura de uma obra gere preconceito? Sem dúvida. A escrita é uma ferramenta conhecida para espalhar preconceitos: Bíblia, Alcorão, Mein Kampf, The Bell Curve. A diferença é que essas obras são mais complexas que um dicionário, possuem uma retórica mínima e, especialmente no caso dos textos religiosos, uma grande legião de seguidores e doutrinadores que se dedicam a espalhar os preconceitos que elas sugerem ou podem sugerir. Já o dicionário é uma lista quase inarticulada de itens e com pouquíssimos fãs. Ainda que seja possível, não me parece corriqueiro que mesmo o mais fanático dos normativistas suponha que o dicionário seja a autoridade absoluta que o procurador Neves sugere.

E a realidade? As notas na imprensa não mencionam, e imagino que o texto da ação do MPF também não apresente, qualquer evidência de que o dicionário seja esse bicho papão inoculador de preconceitos. Qual a evidência concreta de que a leitura de um verbete de dicionário gera preconceito? Qual a evidência de que a supressão de acepções de um verbete diminua o preconceito por um grupo?

Provavelmente nenhuma em ambos os casos, o que não surpreende. Operadores do direito costumeiramente usam apenas da argumentação para sustentar uma posição e julgam que é o suficiente. Felizmente a realidade costuma ser mais interessante e surpreendente que a masturbação intelectual pura. O lamentável é o gasto de recursos do contribuinte em ações inúteis na justiça. Não é preciso nem ter estudado Direito pra imaginar umas causas muito melhores pra um servidor do estado que ganha mais de 20 mil reais mensais defender.

2012-02-24

O iPad e a preguiça do burocrata

A Folha de São Paulo de hoje deu a notícia da aquisição, pela presidência da república, de tablets com especificações que tornariam o iPad o único concorrente possível na licitação. O problema é, obviamente, a preferência pela marca para um produto que não é o único no mercado, o que seria ilegal. A reportagem da Folha aponta que as especificações do edital da presidência da república são uma cópia das especificações do iPad como estão no site da Apple, inclusive com a mesma ordem de apresentação. Até o suporte para línguas como cherokee e tibetano é exigido!

Como a reportagem da Folha, mesmo na versão para assinantes, é vaga nos detalhes sórdidos, fui atrás do edital completo para verificar as informações. Minha experiência em um setor de licitação de um órgão do executivo sugeria que a informação era plausível e provável. O edital é fácil de achar tanto no Comprasnet quanto no site da presidência (congrats pela transparência).

De fato, a reportagem da Folha estava correta. As especificações são uma cópia verbatim do site da Apple. Compare você mesmo: especificações da Apple vs edital (páginas 15-18). O pregão ocorreu, foi homologado e há até uma proposta da empresa vencedora (foto no final do post). Só não parece que a aquisição ocorreu. não encontrei publicação de extrato de contrato no Diário Oficial e o gasto não consta no Portal da Transparência para 2011 (consultas para 2012 ainda não estão disponíveis).

Mas fiquei ainda mais curioso com o edital, especialmente a justificativa para a aquisição dos tablets. Não discuto o mérito da necessidade da presidência da república ter tablets: são computadores e nem precisam mais de uma justificativa. Burocrata sem computador é como "circo sem palhaço." Mas também sei que essas justificativas podem ser verdadeiras peças cômicas, um blablablá inútil, mal escrito e que ninguém lê. Ou quase.

Uma sentença na justificativa me chamou a atenção:

 "Do ponto de vista da administração pública, os ganhos utilizando esta proposta tecnológica são variados, podendo-se destacar alguns como: liberdade de movimento, processamento ao alcance das mãos, além da simplicidade no uso." (grifo meu)

"Processamento ao alcance das mãos?" Não soou burocratês típico, mas talvez a parte do anúncio do produto. Meu passadode  professor e um hábito nerd incorrigível me lembraram da velha máxima: "Google is your friend."

Googlei e caí direto num artigo intitulado "Tablets nas organizações", de autoria de Renato Vilela Barbosa e datado de 9/2/2011.

A sentença suspeita do edital é cópia quase ipsis litteris do artigo. Destaquei apenas as diferenças mínimas entre os dois trechos.

"Do ponto de vista das empresas os ganhos utilizando esta proposta de dispositivo são variados, mas podemos destacar alguns como: liberdade de movimento, processamento ao alcance das mãos, além da simplicidade no uso." - Artigo "Tablets nas organizações"

"Do ponto de vista da administração pública, os ganhos utilizando esta proposta tecnológica são variados, podendo-se destacar alguns como: liberdade de movimento, processamento ao alcance das mãos, além da simplicidade no uso." - Termo de referência do pregão eletrônico 53/2011 da secretaria geral da presidência da república (pág. 15)

Ah, só uma sentença... um descuido, talvez. Não mesmo:

"[...] os tablets podem exercer qualquer atividade projetada para ser executada por um thin-client, como email, elaboração de documentos, apresentações, ferramentas coorporativas entre outras. Vale destacar que grande parte das aplicações das empresas são desenvolvidas para web intranet, o que tornam os aplicativos praticamente adaptados a esta nova tecnologia." - Artigo "Tablets nas organizações"

"Os tablets podem exercer qualquer atividade projetada para ser executada por um thin-client, como email, elaboração de documentos, apresentações, ferramentas coorporativas entre outras. Vale destacar que grande parte das aplicações dos órgãos públicos e empresas, hoje em dia, são desenvolvidas para web intranet, o que tornam os aplicativos praticamente adaptados a esta nova
tecnologia."
- Termo de referência do pregão eletrônico 53/2011 da secretaria geral da presidência da república (pág. 15)

Não surpreendentemente, o burocrata que elaborou o termo de referência parece ter sido preguiçoso, no mínimo. Além de não conseguir elaborar uma justificativa no mínimo parafraseando o artigo de Renato Vilela Barbosa, também não citou a fonte ou desenvolveu minimamente o que chupinhou.

Ainda que não tão grave quanto a cópia das especificações do iPad, que efetivamente direcionaram a licitação, a cópia de uma justificativa trivial é mais uma evidência da relação pobre que alguns burocratas têm com a autoria. Copiar parece ser a norma. A exceção? Gastar uma meia hora pensando ou se dar ao trabalho de citar a fonte.

(Um/a colega me indicou a reportagem da Folha. Como não tive autorização prévia, não o/a cito, mas farei quando e se ele/ela quiser.)




2012-02-12

Os burocratas também dançam

A foto é do músico Moby, reproduzida do seu blog sobre arquitetura de Los Angeles. Um blog recente, com umas poucas fotos, um side project despretensioso.

A pose típica de perfil do Facebook  foi provavelmente obtida em abril de 2010 quando Moby fez uma turnê no Brasil que incluiu um show gratuito em Brasília (não por acaso, foi ótimo).

A paisagem sugere que Moby deve ter gostado da arquitetura de Brasília, que é, aliás, uma das únicas razões para qualquer pessoa visitar Brasília. Vamos admitir: ninguém vem a passeio a Brasília. Vêm a trabalho ou visitar a família. Nem para visitar os amigos, que acabam preferindo ir pra qualquer lugar que ficar em Brasília. Ainda estou pra encontrar uma pessoa que, sem conhecer alguém ou ter um compromisso de trabalho, veio a Brasília para "conhecer, relaxar por uns dias". Também acho que é inimaginável alguém dizer que sonha em se mudar para Brasília, exceto a trabalho. Até João de Santo Cristo acabou aqui por acaso.

O desprezo turístico por Brasília não é surpreendente. Não temos a fama de cidade maravilhosa como o Rio ou de cidade interessante como Sampa. Nada de praia, o clima é desértico, distante de outras cidades interessantes e, como a cereja do bolo, a cidade tem a reputação de origem de tudo de ruim que acontece no país. A verdade é que se Brasília não fosse a capital e nem tivesse tanta gente com dinheiro, também não teríamos a sorte de ter artistas como Moby ou Baryshnikov se apresentando aqui.

Mas temos uma característica em comum com cariocas, paulistanos e soteropolitanos (baiano de Salvador, não precisa googlar): a mesma miopia de achar a nossa cidade a melhor que existe, mesmo com a umidade do deserto, a ausência de esquinas e a arquitetura esquisita. Na realidade, a cidade já tem mais ou menos os mesmo problemas de outras cidades brasileiras e nenhum grande atrativo ou repelente. De singular só mesmo a arquitetura e a abundância de burocratas, que também curtem Moby.

Para não deixar de fora a música de Moby, procurei um trecho que servisse como um conselho aos burocratas, ainda que possível apenas fora de contexto:


"Some things fall apart
Some things make you whole
Some things that you find
Are beyond your control
" - Moby, Where you End

2012-02-10

Graça Foster e o suposto prejuízo da Petrobras

Saiu hoje na Folha.de São Paulo a notícia de que a nova diretora da Petrobras, Graça Foster, mandou enterrar um equpamento de R$ 51 milhões para cumprir o prazo de entrega de um gasoduto. Vamos tomar a notícia no seu valor de face, ainda que isso não seja seguro. Mas serve para o exercício de dissonância.

Se os fatos parassem aí, a reação de qualquer leitor é previsível: que absurdo, que descaso. Mas a Folha piora um pouco:

"Obcecada pelo cumprimento de metas, Graça, como gosta de ser chamada, autorizou o abandono do equipamento, um perfurador de rochas para túneis."

Sugere-se que a irresponsabilidade do ato é causada por um traço de personalidade, a obsessão. Passa-se a idéia de uma pessoa descontrolada e que não se importa com o dinheiro do contribuinte para satisfazer seus caprichos. Só ao final da matéria o lado da Petrobras é explicado:


"Cálculos iniciais da equipe de Graça Foster previam que a retirada da tuneladora após o término da perfuração poderia atrasar o início do escoamento do gás em seis meses. 
 [...]
A Petrobras afirmou que o abandono do equipamento evitou prejuízo maior."

E, novamente, vamos tomar a afirmação da Petrobras como verdadeira. Retirar o equipamento seria mais caro do que enterrá-lo. O prejuízo de não ter o gás seis meses antes do tempo custaria mais à Petrobrás (e ao povo brasileiro) do que a obsessão de executar uma obra como planejada do início ao fim. O artigo não menciona o porquê do atraso, mas duas possibilidade vêm à mente:

1 - O atraso foi causado pelo planejamento ruim, ineficiente dos gestores da Petrobras;
2 - O atraso foi causado por imprevistos durante a obra.


Sem detalhes adicionais, o benefício da dúvida deve ir para a Petrobras. Uma das maiores, mais competentes e lucrativas empresas do mundo não costuma ter planejamento ineficiente, não pode ter planejamento ineficiente. Com ações na bolsa qualquer vacilo custa muito mais que R$ 51 milhões e não há evidência de que a Petrobras seja ineficiente ou desorganizada. Por outro lado, um imprevisto numa obra complexa é uma certeza estatística, não uma possibilidade remota. Qualquer pessoa corajosa o suficiente para construir uma casa, ainda que pequena, sabe que shit happens, que quase sempre a obra sai mais cara que o planejado. Até a engessada Lei 8.666/93 do governo prevê uma margem de 50% de variação no custo para obras maiores.

Se o grande imprevisto aconteceu e o atraso custaria mais que os R$ 51 milhões do custo da máquina, a decisão de Foster e equipe foi acertada, um exemplo impecável de competência gerencial, de responsabilidade com os recursos públicos. E de coragem, sem dúvida. Não é qualquer um que assume o risco de enterrar uma máquina de R$ 51 milhões, especialmente sabendo o que imprensa faria com o fato.

Acertada e de coragem, a idéia de Graça Foster lembrou-me da icônica foto abaixo durante a retirada de civis de Saigon no final da guerra do Vietnam. No caos do resgate por helicóptero não havia espaço para os helicópteros que chegavam e nem tempo para levá-los a outro local. A única solução era jogá-los no mar para que outros helicópteros descarregassem mais pessoas escapando da guerra. Decisão mais fácil, sem dúvida, mas que sorte a dos americanos não terem uma Folha de São Paulo.




A campanha que o Ministério da Saúde não quer que você veja

A burocracia brasileira não é arcaica só nos procedimentos. Também nos costumes está um bocado atrasada. O vídeo abaixo foi postado e posteriormente retirado do Portal sobre Aids, Doenças Sexualmente Transmissíveis e Hepatites Virais. A desculpa? Teria sido um equívoco: o vídeo deveria ser exibido apenas em locais fechados. Ainda bem que humanos ainda alimentam os portais e cometem esses "erros".

E qual o grande problema do vídeo? Dois homens se acariciando! O horror! Em 2012, parece que o Ministério da Saúde endossa a homofobia. Ou vai ver estavam pensando nas crianças...

Além do meu blablablá, leiam o brilhante post do Leonardo Sakamoto sobre o caso.

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2012-02-09

Os burocratas e a autoria

Começo com uma anedota. Nos meus primeiros dias como burocrata recebo um telefonema de outro burocrata me informando que o documento que o meu setor enviou tinha inconsistência de datas, que não poderia ser daquele jeito, que eu tinha de ter mais atenção, blablabla. Eu, como não sabia o que era exatamente, pergunto quem havia assinado o documento. Burocrata furioso(a): - "Foi João e Maria." Eu: - "Então pergunte a João e Maria sobre essas datas, eu não tenho a menor idéia."

Uns poucos anos se passaram e até hoje me espanto com o modo como a autoria da produção intelectual é tratada por parte da burocracia estatal. Ou melhor, de como a autoria é, muitas vezes, completamente desconsiderada e, no extremo, apropriada indevidamente por terceiros.

Há diversos tipos de produção escrita num típico órgão público: memorandos simples e banais, memorandos que explicam uma situação não-óbvia, ofícios (pode também chamar de carta) simples e complexos, relatórios, portarias, pareceres, despachos, etc.

Não interessam aqui os documentos muito banais e formais, que são produzidos de forma (semi)automática e não exigem nenhuma grande habilidade, no máximo atenção: "Ao setor financeiro: pague João da Silva, CPF 000, a quantia X por motivo Y", "Encaminha-se o relatório de Maria da Silva para ser analisado em relação a Z." Esses não importam, no fundo, a autoria. Geralmente vão assinado por alguém que ganha extra pela responsabilidade de assinar aquilo e é produzido... por qualquer pessoa que ficar encarregada, mas essa é outra história.

Também não interessam os que falam pela instituição, como relatórios de gestão, portarias, instruções normativas, regulamentos. São muitas vezes de autoria múltipla e o dirigente máximo assina porque é o responsável pelo ato.

O que interessa, e causa espanto para alguns observadores externos, é o caso do documento produzido por um indivíduo ou pequeno grupo e que não é nem banal e nem descreve um ato institucional. Um parecer, um ofício/memorando que demande análise e cuidado na elaboração, um estudo, uma apresentação, um rascunho de uma idéia que seja. Nesse caso, por uma questão de responsabilidade e reconhecimento, o autor (ou autores) deveria assinar o documento. Suas idéias, seu esforço, sua capacidade intelectual, sua formação é que levaram àquele resultado. E o autor acaba sempre reconhecido? Nem sempre: às vezes o chefe rouba a autoria. Não tem outro termo mesmo, é roubar. Usar "apropriar-se" seria suavizar a desonestidade intelectual do ato.

Essa situação não é universal, mas freqüente o suficiente para ser percebida, incomodar e ser tolerada. Também a atitude dos usurpados da autoria não é uniforme: alguns não precisam, não exigem e nem querem ser reconhecidos. "Deixa o chefe assinar que eu fico bem na fita." "Isso sempre foi assim, não tem jeito, deixa quieto." "Melhor não colocar meu nome, vai que dá rolo." Justificativas interesseiras, não-confrontacionais, covardes, difícil fazer uma lista exaustiva.

Felizmente há pessoas, como yours truly, que acham a situação absurda porque dão valor ao seu trabalho e suas horas e dias analisando e resolvendo um problema e querem um reconhecimento mínimo. Não querem um tapinha nas costas e nem, necessariamente, um cargo. Querem o muito simples, mas nada inconseqüente: sua assinatura (por enquanto ainda em tinta) no papel de forma indelével. São agentes públicos e têm criações ora próprias, ora coletivas, mas não há motivo para não merecerem o crédito devido em cada situação. E claro, as conseqüências.

Não é tão difícil não ser roubado. Vi poucas histórias de chefes que, quando confrontados, insistiram em se passar por autores de algo que não fizeram. De vez em quando tentam até comigo, but they know better by now.

2012-02-07

Você sabe o que é um cabineiro?

 Eu não sabia até uns dois anos atrás. É o mesmo que ascensorista ou operador de elevador. Para os que não sabem, os ascensoristas ainda existem, especialmente nos prédios públicos em Brasília. Pode-se pensar que estes elevadores que precisam de operadores devem ser contemporâneos da fundação de Brasília, certo? Daqueles com grades, botões de pressão, que vivem dando problema e que causam mortes horríveis nos filmes de terror B.

Não mesmo. Alguns mais velhos que outros, mas completamente automatizados. Os mais modernos com TV, indicador visual e até síntese de fala para deficientes visuais. Podem dar bom dia e informar a temperatura.

Seriam então estes ascensoristas funcionários antigos dos órgãos públicos que estavam na função, ainda não se aponsentaram e, por algum motivo obscuro, não foram reenquadrados em outra função mais produtiva? Também não. Os ascensoristas são funcionários terceirizados e contratados para serem ascensoristas. Uma busca no Diário Oficial para com o termo "ascensorista" encontra seis contratações e avisos de licitação este ano (concedo que um dos contratos encontrados, e excluído da lista, é para operação de um elevador de passarela de travessia de pedestres de uma estrada e pode ser realmente necessário para controlar um grande fluxo de pessoas, mas não para apertar os botões).

E pra que seriam contratados os ascensoristas realmente? Controlar o fluxo de pessoas? Os órgãos governamentais não tem elevadores como o Lacerda, em Salvador. Nem mesmo elevadores que caibam mais de duas dezenas de pessoas. Talvez para auxiliar no transporte de cargas e documentos? Os processos ainda são de papel, afinal. Até poderiam, mas geralmente não é o caso, os ascensoristas operam principalmente os elevadores que não são os de carga, i.e., os com espelho.

Talvez por motivos de segurança, como comissários de bordo num avião? Também não. Os elevadores têm sistemas de alarme, de comunicação e o resgate de pessoas de um elevador com problema deve ser feito por bombeiros, não ascensoristas.

A razão, raramente explicitada por escrito, mas amplamente conhecida, é que são contratados para servir os dirigentes. Não só perguntar qual o andar e apertar o botão, como fazê-lo ir direto para o andar de destino. Para deixar o elevador à espera do dirigente chegar (e ficar fora de uso) para que não se espere um ou dois minutos pelo elevador.

Também na CAPES existiam até pouco tempo atrás. A empresa que prestava o serviço teve problemas e o contrato foi cancelado. Era um contrato de R$82.635,00 ao ano, o suficiente para bancar quase 46 bolsas de doutorado, i.e., quase quatro anos de bolsa de um doutorando com bolsa CAPES.

É pouco perto das dezenas de milhares de bolsas da CAPES? Sim. Mas é um custo desnecessário. Um capricho de uma burocracia com hábitos de 50 anos atrás. Que não consegue acabar com setores para preparar e distribuir café mesmo quando existem máquinas automáticas de café. Que acha perfeitamente normal que secretárias sirvam água, café para servidores ocupantes de cargos comissionados. De que adianta trocar a palavra chefe por coordenador, gerente por gestor, falar de resultados, mas continuar com este tipo de gasto fútil e constrangedor?

Antes de começar a escrever o post procurei pelo termo "elevator operator" na Wikipedia. Um artigo curto, meio abandonado. Lista alguns poucos edifícios nos EUA onde ainda existem ascensoristas. Lista também os usos especializados em situações de segurança ou em que a operação é realmente necessária. São ou muito mais que apertadores de botão ou uma relíquia turística. Em Brasília, são uma lembrança vergonhosa de que ainda há muitos empregos para a mais banal das tarefas e uma cultura governamental que tem dificuldade em se modernizar de fato.

2012-02-03

Back in the day

Numa dessas buscas que a gente faz e não se lembra por que começou a fazer, encontrei este artigo de um ex-dirigente da CAPES no governo militar (1979-82). É um tempo diferente e um retrato bem parcial, mas as comparações são inevitáveis.

Alguns trechos:

"[...] se a honestidade era perseguida com fervor, a legalidade
era impossível, dada a rigidez das regras do serviço público. Metade dos
nossos funcionários era de carreira. O resto era emprestado ou contratado
por via das fundações universitárias."


Continuamos com aproximadamente metade dos funcionários de carreira, só a forma de contratar os não-pemanentes mudou de fundação para empresas de terceirização. Agora usa-se também o rótulo de "apoio administrattivo", mas a maioria destes funcionários terceirizados realizam tarefas idênticas às dos servidores da carreira permanente.

"Um ou outro político vinha pedir bolsas para
seus apaniguados. A estratégia já estava mapeada. Eram gentilmente atendidos,
anotávamos o pedido e dizíamos que seria analisado. Se aprovado
pela comissão de consultores, qual o problema? Se recusado, poucos candidatos
tinham o poder de fogo para voltar ao político amigo. Nosso único
pecado, venial, era aceitar os pedidos fora de prazo. Mas se o pretendente
ganha a bolsa pelos seus méritos, um par de semanas de desrespeito pelos
prazos não é um pecado grave."


Os pedidos fora de prazo continuam, o tratamento dado a eles é variável. Felizmente, hoje o servidor de carreira pode denunciar esses desrespeitos ao prazo que causam prejuízos a terceiros. Para a imprensa ou para alguém num cargo que paga maior gratificação do que quem deu a autorização (sempre há alguém). Se fazem? Acho que a maioria não.

"[...] diante da expansão dos programas, tornou-se problemático conceder individualmente
milhares de bolsas com uma equipe pequena e diante da decisão
de não criar uma grande burocracia. Melhor seria distribuir cotas de bolsas
para os melhores cursos e deixar que eles próprios escolhessem seus alunos.
Mas para decidir o tamanho das cotas a serem alocadas a um número de
programas que já ultrapassava mil, seria necessário avaliá-los. Daí o nascimento
de um mecanismo inicial de avaliação, usando o chamado julgamento
dos pares. Isto é, quem avaliaria os cursos seriam consultores selecionados
dentro da própria comunidade científica."


Hoje a CAPES continua avaliando, distribuindo cotas de bolsas, mas paga diretamente os bolsistas. E a máquina burocrática continua pequena. E os milhares estão na casa dos 50 mil e crescendo. Mesmo que a informatização tenha aumentado, a percepção é de que é longe de ser suficiente para dar conta. A sensação de se estar sempre no limite é constante.

"Quando veio a onda da reorganização,
o que fizemos foi simples. Antonio MacDowell, o incurável engenheiro
do ITA, foi encarregado de entrevistar todos os funcionários, perguntar
o que faziam, em quem mandavam e quem mandava neles. Com essa
pesquisa de campo, desenhou o nosso organograma, colocando no papel,
rigorosamente, o que estava acontecendo no mundo real. A reorganização
deu certo porque ninguém mudou de posição para corresponder ao organograma.
Pelo contrário, estavam lá porque foi a melhor solução encontrada
nas inúmeras experimentações que fazíamos. O organograma era a mera
representação no papel do organograma informal que prevalecia."


Nem pensar em fazer algo do tipo hoje. As reorganizações, jamais amplamente divulgadas, são pensadas top-down e para encaixar pessoas em cargos. Hoje o informal é muito pequeno porque não se ousa desviar muito do formal, mesmo que não seja o mais eficiente. No máximo, o informal existe com cargos deslocados.

2012-02-01

O argumento da experiência

Um argumento que ouço com freqüência é o da experiência: "Fulano tem cargo de nível médio, mas tem muita experiência e faz um trabalho muito melhor que de muita gente que tem cargo de nível superior." O argumento pode ser verdadeiro em alguns casos: há excelente assistentes e analistas medíocres (como medir isso objetivamente é outra história). A situação talvez seja até mais comum com servidores públicos que ingressaram antes de 88, quando os concursos públicos eram raros e as contratações  precárias e mais personalizadas. As indicações políticas, favores, apadrinhamentos e dificuldades quaisquer em contratar podem ter gerado situações em que o mérito não era um fator relevante nas contratações.

Mas os LPs saíram de moda, não há mais hiperinflação e a guerra fria é uma ficção de vídeo games (só o Sarney continua na ativa) . Há mais de 20 anos a regra do concurso público obrigatório para cargos efetivos já vale. Hoje, a grande maioria dos candidatos a vagas em carreiras públicas federais concluiu a educação superior. O motivo óbvio é a maior possibilidade de aprovação: um concurso com conteúdo mais fácil e com concorrentes percebidos como mais fracos que os concorrentes de concursos de carreiras de nível superior. Motivo perfeitamente racional: prefiro ter maior chance de ter um salário menor do que ter uma menor chance de um salário maior. O velho pássaro na mão. Especialmente porque o objetivo é concorrer, no futuro, a um cargo melhor.

Só que como todos entraram por concurso público, com exigências e grau de dificuldade distintos, o que ocorre é que os analistas têm, a priori, mais mérito (e responsabilidade e salário) que os assistentes. Na prática, é de se esperar que também que analistas tenham desempenho, na média, superior ao de assistentes para as tarefas típicas de analistas. E é aí que a comparação que citei inicialmente falha. Especialmente quando a comparação é feita para servidores pós-88, está se comparando o assistente na cauda direita da curva, i.e., o mais bem preparado, com o analista do lado esquerdo da curva, i.e., o fraco. Está se comparando a exceção de um extremo com a exceção do extremo oposto. Apples and oranges, cherry picking, confirmation bias, take you pick. Só não faça o outlier virar média.