2012-02-29

O dicionário, o MPF e a realidade

A imprensa noticiou recentemente (e. g. Folha.com e Estadão) que o Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação para retirar de circulação o dicionário Houaiss. O motivo: o verbete 'cigano' lista acepções que seriam "pejorativas e preconceituosas" e, portanto, praticaria racismo contra ciganos.

Começo com uma admissão de ignorância: não sabia que cigano era sinônimo para "aquele que trapaceia, velhaco". Provavelmente porque nunca morei em lugares com qualquer quantidade visível de ciganos e porque não tenho qualquer interesse pelo tema. Difícil imaginar uma situação em que procuraria a palavra 'cigano' no dicionário. Mas se eu procurasse, o que aconteceria? Segundo o procurador Cléber Eustáquio Neves, segundo a citação do Estadão, eu poderia virar um pessoa preconceituosa instantaneamente:

"Trata-se de um dicionário. Ninguém duvida da veracidade do que ali encontra. Sequer questiona. Aquele sentido, extremamente pejorativo, será internalizado, levando à formação de uma postura interna pré-concebida em relação a uma etnia que deveria, por força de lei, ser respeitada."

Mas voltemos atrás um pouco. Imagino que seja óbvio para (quase) qualquer pessoa que um dicionário apenas registra significados que as palavras costumam ter. É um registro imperfeito, parcial, uma aproximação tanto das palavras que os falantes usam quanto dos significados que os falantes de português têm das palavras. Palavras e significados não surgem de um dicionário, apenas ficam registrados nele. Um dicionário decente, e o Houaiss tem boa reputação, não é uma ferramenta para emitir juízo moral sobre as palavras da língua ou seu uso. Palavras e seus significados são incluídos, essencialmente, com base na freqüência de uso acumulado, especialmente do uso escrito culto da língua. Justamente por ser um registro de uso acumulado, esse registro acaba sendo histórico: palavras geralmente são acrescidas a dicionários, quase nunca retiradas. No máximo indica-se que é uma palavra ou uma acepção arcaica, em desuso. Um dicionário é, em essência, como uma lista telefônica absurda que acumulasse todos os telefones e endereços das pessoas durante a sua vida e que não eliminasse nem os nomes das pessoas que já morreram.

No entanto, para o procurador Neves, o dicionário é muito mais que as quase-obviedades que descrevi. É um registro capaz de alterar a realidade e o cérebro daquele que ousar consultá-lo porque "Ninguém duvida da veracidade do que ali encontra. Sequer questiona." De fato, não há porquê duvidar/questionar um bom dicionário: alguém vai contestar o que zwingliano significa? O suposto efeito da leitura do dicionário é que seria possivelmente devastador: "Aquele sentido, extremamente pejorativo, será internalizado, levando à formação de uma postura interna pré-concebida em relação a uma etnia [...]"


A suposta internalização de sentido tem dois aspectos a serem analisados: o da plausibilidade e o da realidade.

É plausível/possível que a leitura de uma obra gere preconceito? Sem dúvida. A escrita é uma ferramenta conhecida para espalhar preconceitos: Bíblia, Alcorão, Mein Kampf, The Bell Curve. A diferença é que essas obras são mais complexas que um dicionário, possuem uma retórica mínima e, especialmente no caso dos textos religiosos, uma grande legião de seguidores e doutrinadores que se dedicam a espalhar os preconceitos que elas sugerem ou podem sugerir. Já o dicionário é uma lista quase inarticulada de itens e com pouquíssimos fãs. Ainda que seja possível, não me parece corriqueiro que mesmo o mais fanático dos normativistas suponha que o dicionário seja a autoridade absoluta que o procurador Neves sugere.

E a realidade? As notas na imprensa não mencionam, e imagino que o texto da ação do MPF também não apresente, qualquer evidência de que o dicionário seja esse bicho papão inoculador de preconceitos. Qual a evidência concreta de que a leitura de um verbete de dicionário gera preconceito? Qual a evidência de que a supressão de acepções de um verbete diminua o preconceito por um grupo?

Provavelmente nenhuma em ambos os casos, o que não surpreende. Operadores do direito costumeiramente usam apenas da argumentação para sustentar uma posição e julgam que é o suficiente. Felizmente a realidade costuma ser mais interessante e surpreendente que a masturbação intelectual pura. O lamentável é o gasto de recursos do contribuinte em ações inúteis na justiça. Não é preciso nem ter estudado Direito pra imaginar umas causas muito melhores pra um servidor do estado que ganha mais de 20 mil reais mensais defender.

4 comentários:

  1. Na veia. No período constituinte um grupo de defesa de cultura negra quis questionar a acepção de 'negro' como sinônimo de escravo e ainda processar o Aurélio Buarque de Holanda.Foram demovidos do intento. Pirados e obscurantistas "sempre tereis entre vós" Dario Franco

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  2. Não acredito que o dicionário tenha a percepção apresentada pelo nosso colega advogado de carreira. É apenas uma ferramenta que tem a função de sanar dúvidas e possibilitar uma melhor escrita para um melhor entendimento... sempre achei injusto o título "Pai dos burros"!

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  3. Uma coisa é a influência que o dicionário tem sobre as pessoas. Muitos leigos, de fato, defendem que a acepção trazida pelo dicionário é a palavra final e ponto. Além disso, o dicionário traz vários sentidos possíveis empregados. Porém, concordo que o MPF teria outras atribuições mais prioritárias. A propósito eu tampouco havia procurado a palavra "cigano" no dicionário. Veja o que o Aurélio diz: "Substantivo masculino.
    1.Indivíduo de um povo nômade, provavelmente originário da Índia e emigrado em grande parte para a Europa Central, de onde se disseminou, povo esse que tem um código ético próprio e se dedica à música, vive de artesanato, de ler a sorte, barganhar cavalos, etc. [Designam-se a si próprios rom, quando originários dos Bálcãs, e manuche, quando da Europa central.] [Sin.: boêmio, gitano; calom (bras.); judeu (MG); quico (MG e SP).]
    2.Gloss. Romani (1 e 2).
    3.Fig. Indivíduo boêmio, erradio, de vida incerta.
    4.Negociante esperto, vivo.
    5.Fig. Vendedor ambulante.
    6.Designação de carneiro que serve de guia ao rebanho.
    Adjetivo.
    7.Esperto, vivo.".

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  4. Fabiano: mas qual a evidência de que o dicionário tem qualquer influência além de informar o significado, a ortografia, dar exemplos de uso? Meu ponto é: não tem nenhuma conseqüência relevante além de informar. Se tivesse, um erro no dicionário mudaria completamente o sentido das palavras para as pessoas que consultassem o verbete? Ou seria reconhecido simplesmente como um erro?

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