2012-02-09

Os burocratas e a autoria

Começo com uma anedota. Nos meus primeiros dias como burocrata recebo um telefonema de outro burocrata me informando que o documento que o meu setor enviou tinha inconsistência de datas, que não poderia ser daquele jeito, que eu tinha de ter mais atenção, blablabla. Eu, como não sabia o que era exatamente, pergunto quem havia assinado o documento. Burocrata furioso(a): - "Foi João e Maria." Eu: - "Então pergunte a João e Maria sobre essas datas, eu não tenho a menor idéia."

Uns poucos anos se passaram e até hoje me espanto com o modo como a autoria da produção intelectual é tratada por parte da burocracia estatal. Ou melhor, de como a autoria é, muitas vezes, completamente desconsiderada e, no extremo, apropriada indevidamente por terceiros.

Há diversos tipos de produção escrita num típico órgão público: memorandos simples e banais, memorandos que explicam uma situação não-óbvia, ofícios (pode também chamar de carta) simples e complexos, relatórios, portarias, pareceres, despachos, etc.

Não interessam aqui os documentos muito banais e formais, que são produzidos de forma (semi)automática e não exigem nenhuma grande habilidade, no máximo atenção: "Ao setor financeiro: pague João da Silva, CPF 000, a quantia X por motivo Y", "Encaminha-se o relatório de Maria da Silva para ser analisado em relação a Z." Esses não importam, no fundo, a autoria. Geralmente vão assinado por alguém que ganha extra pela responsabilidade de assinar aquilo e é produzido... por qualquer pessoa que ficar encarregada, mas essa é outra história.

Também não interessam os que falam pela instituição, como relatórios de gestão, portarias, instruções normativas, regulamentos. São muitas vezes de autoria múltipla e o dirigente máximo assina porque é o responsável pelo ato.

O que interessa, e causa espanto para alguns observadores externos, é o caso do documento produzido por um indivíduo ou pequeno grupo e que não é nem banal e nem descreve um ato institucional. Um parecer, um ofício/memorando que demande análise e cuidado na elaboração, um estudo, uma apresentação, um rascunho de uma idéia que seja. Nesse caso, por uma questão de responsabilidade e reconhecimento, o autor (ou autores) deveria assinar o documento. Suas idéias, seu esforço, sua capacidade intelectual, sua formação é que levaram àquele resultado. E o autor acaba sempre reconhecido? Nem sempre: às vezes o chefe rouba a autoria. Não tem outro termo mesmo, é roubar. Usar "apropriar-se" seria suavizar a desonestidade intelectual do ato.

Essa situação não é universal, mas freqüente o suficiente para ser percebida, incomodar e ser tolerada. Também a atitude dos usurpados da autoria não é uniforme: alguns não precisam, não exigem e nem querem ser reconhecidos. "Deixa o chefe assinar que eu fico bem na fita." "Isso sempre foi assim, não tem jeito, deixa quieto." "Melhor não colocar meu nome, vai que dá rolo." Justificativas interesseiras, não-confrontacionais, covardes, difícil fazer uma lista exaustiva.

Felizmente há pessoas, como yours truly, que acham a situação absurda porque dão valor ao seu trabalho e suas horas e dias analisando e resolvendo um problema e querem um reconhecimento mínimo. Não querem um tapinha nas costas e nem, necessariamente, um cargo. Querem o muito simples, mas nada inconseqüente: sua assinatura (por enquanto ainda em tinta) no papel de forma indelével. São agentes públicos e têm criações ora próprias, ora coletivas, mas não há motivo para não merecerem o crédito devido em cada situação. E claro, as conseqüências.

Não é tão difícil não ser roubado. Vi poucas histórias de chefes que, quando confrontados, insistiram em se passar por autores de algo que não fizeram. De vez em quando tentam até comigo, but they know better by now.

2 comentários:

  1. Meu caro temos um problema maior que o roubo da autoria que é o roubo da obra. Por vezes são elaborados documentos que se não estiverem a contento dos "gerentes", são simplesmente subtraídos dos processos ou obrigados a uma "remodelagem" para que se aprovem certas coisas que os documentos iniciais, baseados em análises séria apontam em direção contrária à solicitada pela chefia.

    ResponderExcluir
  2. Posso levar para academia? Tipo: o aluno faz o artigo mas o orientador é o primeiro autor?
    Great!

    ResponderExcluir