2013-03-25

O erro de ortografia e o colapso da sociedade judaico-cristã ocidental capitalista

Notícias sobre o ENEM viraram uma rotina desinteressante da imprensa. São louváveis quando denunciam as tentativas de fraude, exageradas quando encontram provas trocadas, conspiratórias quando caçam redações que têm gracinhas e, ainda assim, conseguem alguma nota.

Em 2013, o bolo da cereja das matérias sobre o ENEM foram as redações com nota máxima e as formas rasoavel, enchergar, trousse. O Estadão, citando opiniões de especialistas que apontam o suposto problema, conclui:


"E como aceitar que alguém que tenha 'excelente domínio das estruturas da língua portuguesa' cometa erros gramaticais primários? As autoridades se esquecem de que, se continuarem sendo lenientes com deformações da língua portuguesa, o ensino formal não tem mais sentido. Se elas continuarem tolerando erros gramaticais primários, para que serve, então, a escola?" - O Estado de São Paulo - Opinião - 2013-03-20


Também o comentarista conservador Reinaldo Azevedo mostra sua indignação:


"'trousse', 'enchergar' e 'rasoavel' não são variantes linguísticas nem segundo as considerações dos aloprados do 'nós pega os peixe'. Vai bem a escolinha do professor Mercadante." - Blog do Reinaldo Azevedo. Acessado em 2013-03-24.


Críticas sem substância? Concordo. Podem procurar nas indignações banais do Facebook, nos comentários ao artigo do Reinaldo Azevedo, nos editoriais da imprensa escrita e o que irão encontrar é apenas indignação e crítica/xingamento ao governo e ao Partido dos Trabalhadores. O porquê de tais formas serem absurdas, inadmissíveis, erros grosseiros, uma afronta à língua, nunca é explicitado com argumentos empíricos. No caso do ENEM 2012, o insulto adicional aos indignados é porque redações com 'trousse' et alii recebeu nota máxima da banca, nota entendida como reservada a textos sem falhas, ou com falhas mínimas (só não me perguntem como definir a gravidade da falha).


A noção de que nota máxima deve ser reservada para a perfeição, chocantemente, não é um fetiche universal. Ela não é regra nas melhores universidades americanas, nas universidades francesas ou na Universidade de Brasília. A idéia por trás de sistemas de conceitos discretos, em oposição a valores contínuos de zero a dez/cem/mil, é reconhecer o mérito, ainda que com pequenas falhas. Pode ser visto também como reconhecimento que sistemas biológicos, como o cérebro humano, falham até nos seus melhores exemplares.


Já a noção de erro grosseiro para 'trousse' e seus colegas xucros é mais pervasiva. Indignar-se com essas formas passa até por bom senso (ou seria senso comum? Nunca consegui distinguir um do outro) numa conversa informal:

Madama 1: Menina, cê viu o absurdo da redações do ENEM com erros horrorosos que tiraram nota máxima?
Madama 2: Eu vi, amiga. Fiquei pasma! Se fosse filho meu, pedia pra baixarem a nota.

Os argumentos para justificar a indignação pública, quando existem, são:


  1. Se todo mundo começar a escrever como quiser, ninguém vai mais se entender.
  2. A escola não serve pra nada se esses erros não forem punidos.
  3. São erros primários. Esses erros mostram que o aluno não sabe escrever direito.
  4. A língua portuguesa precisa ser respeitada. Esses erros são inaceitáveis e corrompem/deturpam/violentam a língua.
  5. Se ele cometer esse tipo de erro não vai conseguir emprego.

Há variações e outros argumentos mais exóticos, mas vamos assumir que esses são os argumentos mais freqüentes (um chute, eu assumo) dos indignados cidadãos (ões?) de bom senso que pagam seus impostos e respeitam as leis. E a ortografia.

Já devem imaginar por qual via argumentarei, certo? O que garanto é que será com fatos e dados, não clamor indignado ou ataques ao governo.

Continua...

4 comentários:

  1. A falta de concordância em "o insulto adicional aos indignados é porque redações com 'trousse' et alii recebeu nota máxima da banca" no seu texto é proposital para corroborar seu argumento ou sinal de desconhecimento da norma? Confundiu.

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  2. Um desvio de concordância em 63 verbos concordáveis (citações excluídas). Taxa de acerto de 98,4%. Dá pra arredondar pra nota máxima?

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  3. :) Acho que você mesmo encontrou sua nota...rs...e 98,4 é um notão (na minha opinião)!!!!!!! Mas, considerando que um texto não é avaliado apenas sob o aspecto da concordância verbal...sim, podemos arredondar. :)

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