2013-04-06

Coda: ressaqueado de ortografia

São erros primários. Esses erros mostram que o aluno não sabe escrever direito.


Eu sou um reducionista totalmente fora do armário, mas o reducionismo pra valer a pena precisa ser motivado. Reduz-se para o essencial, o mais importante, o que explica e prediz mais. Mas reduzir a escrita à ortografia é, no mínimo, preguiça (mas costuma ser desonestidade intelectual). É também o que se chama popularmente de julgar o livro pela capa, quem vê cara não vê coração, as aparências enganam. Para estes preguiçosos/indecentes, todas as habilidades necessárias para redigir um texto como capacidade de traduzir idéias, organizá-las, redigir um texto coeso, coerente e eficaz são ignoradas se um erro é encontrado. Se o erro de ortografia emerge, toda a qualidade da escrita parece ir por água abaixo:

"Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de reçaca? Vá, de reçaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de reçaca."
- Dom Casmurro de Machado de Assis. Versão pré-revisão. Talvez.

"O grande Joaquim Maria Machado de Assis JAMAIS cometeria tal barbaridade" - diriam os obcecados pela correção ortográfica. Mas se Machado escrevia sem erros de ortografia ou tinha bons revisores é irrelevante. A troca de 'ç' por 'ss' é possível e comum. Na palavra "ressaca", a troca não alteraria em absolutamente nada a qualidade literária do texto. A metáfora seria a mesma, o romance seria o mesmo. Na verdade, se o texto original tivesse sido impresso com "ç", talvez 'reçaca' fosse uma forma aceitável hoje. Se Machado de Assis usou, por que eu, escrivinhador de final de semana, não poderia usar?


Mas Machado seguiu o padrão ortográfico da época. Como hoje qualquer escritor, jornalista ou operador de mídia social continua fazendo. Com raros desvios e com a vantagem da revisão via software. Mas ainda há estilo, analogia, metáfora, criatividade, enfim, o que realmente importa na escrita e que requer primatas pelados de cérebro agigantado para acontecer. É mister aproveitarmos nossa vantagem sobre o silício enquanto ela existe. Enquanto escrever ainda demanda esforço, gera prazer, causa emoção. Ou celebremos os precursores de um HAL 9000, a perfeição ortográfica e textual e o fim da polícia da gramática.

2 comentários:

  1. Quase doeu a "reçaca".
    Mas o texto ficou muito bom.

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  2. Se não doeu já está a caminho da cura. rs. Obrigado.

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