2013-03-26

Ato um: caos na ortografia

Se todo mundo começar a escrever como quiser, ninguém vai mais se entender.

Esse argumento se baseia na premissa de que existe a possibilidade que a totalidade, ou uma boa maioria, vai escrever como der na telha. Ainda que seja uma possibilidade lógica, não há evidências de que já tenha ocorrido no passado. Também não se sabe quais as condições em que essa anarquia ortográfica poderia acontecer. Talvez: 1) uma maioria se rebela contra a ortografia da classe dominante e passa a utilizar formas diferentes o tempo todo?; 2) uma amnésia ortográfica coletiva se instaura, acompanhada do desaparecimento de todos os registros escritos, e a população precisa criar uma nova ortografia? O primeiro cenário talvez dê um argumento para um comic book que um dia vai virar um filme. O segundo certamente dá um livro do Saramago. Nenhum deles é realístico.

Também assume-se que a ortografia das línguas sempre foi bem definida, um conjunto de regras claras, uma lista oficial, quase sem variação. Se não, como as pessoas se entendiam? Para não ficar muito cansativo, vou contar uma história (porque miojo todo mundo já sabe preparar).

A espécie humana em sua fisiologia moderna tem cerca de 200 mil anos, i.e., já possuíamos capacidade para a fala há 200 mil anos. A origem das primeiras línguas já é um problema mais difícil porque a fala não deixa traço material no ambiente. A estimativa mais atual sobre essa origem coloca as primeiras línguas entre entre 350-150 mil anos atrás (Perreault & Mathew 2012). A escrita, do tipo que codifica palavras e não apenas números, surgiu aproximadamente em 3200 AEC, i.e., tem uns 5,2 mil anos. Já da escrita alfabética encontram-se os primeiros indícios em 2700 AEC. Finalmente, dicionários no formato atual só surgiram em 1690 e 1755 para o francês e inglês, respectivamente.

O fato é que na quase totalidade da história do primata pelado que saiu das savanas africanas não existiu nem escrita e muito menos escrita com ortografia padronizada. Ainda assim, Roma caiu, o antigo e novo testamentos foram escritos (e reescritos) e Shakespeare nos deu Romeu e Julieta. Tudo isso sem dicionário ou corretor ortográfico! 

Claro, as variações nunca foram aleatórias ou para toda palavra possível. Não era que todo autor criasse caprichosamente uma ortografia, independente de listas oficiais ou da polícia ortográfica que faz plantão 24 por 7 nas redes sociais. Tente, por exemplo, escrever 'banana' com outra ortografia. Já com 'trouxe' rapidamente é possível gerar trousse, trouce, trouxce. A realidade é que 'trouxe' é a forma dicionarizada por acidente histórico, não pela lógica da língua ou qualquer explicação post hoc possível.

Padronização ortográfica é inegavelmente uma necessidade moderna, especialmente para o ensino em massa (nem tanto para busca na internet). Mas a ausência de padronização rígida não implicou em incompreensão generalizada e não parece haver evidências de que possa implicar no futuro. Depois do dicionário, não voltaremos aos bons tempos (exceto para os revisores) de uma pequena liberdade ortográfica. Erros ortográficos previsíveis de jovens em idade escolar produzindo um texto sob pressão e sem corretor ortográfico não são um sintoma de que a língua está ficando incompreensível nem são uma ameaça à sociedade judaico-cristã ocidental capitalista. Uma pena.



"It is a damn poor mind that can think of only one way to spell a word."
- Andrew Jackson

4 comentários:

  1. "a realidade é que trouxe é a forma dicionarizada por acidente histórico"....
    Entao por que as normas ganham tanta força? Qual é essa necessidade histórica?
    E os erros ortográficos de jovens, afinal, é sintoma de que, em sua opinião?

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  2. Acha que seu blog é acessível com tantos links em inglês?
    Melhor popularizar.

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  3. Por que as normas ganham tanta força? Não sei exatamente. Arriscando: 1) muita gente gosta de norma, gosta do prazer de dominar uma norma; 2) Norma quase sempre facilita, economiza tempo. Na ortografia o tempo é o de leitura porque o leitor proficiente lê, quase sempre, a palavra inteira, não as letras ou o apenas o som; 3) Normas são impostas pela escola, sociedade. Não se ensina apenas enquadrar-se na norma como ridiculariza-se aquele que não se enquadra.

    Nao quis dizer necessidade histórica, mas acaso, acidente histórico. Todas as línguas tem, seja por empréstimo ou mudança de pronúncia após reforma ortográfica.

    Os erros ortográficos não me parecem sintoma de nada. Falta de leitura? Não há evidência de que estudantes leiam menos que no passado. Talvez leiam mais com a Internet. Falta de compromisso com a escola? Só porque a memória das pessoas é seletiva. Lembramos dos colegas que se destacavam, não a massa mediana. Não é sintoma de nada porque não significa nada. Se o aluno erra uma multiplicação no final da solução de uma equação não se diz é um sintoma que ele "não sabe nada de matemática". Os corretores do ENEM, dois completamente sem contato, consideram que a redação foi excelente em todos os critérios que importam, incluindo correção ortográfica/gramatical, e uma troca numa palavra obscura vira evidência da falta de seriedade do ENEM, da péssima educação no Brasil. Exagerado, não?

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  4. De fato há vários links em inglês. Alguns são referências a estudos publicados em inglês, outros links de referências que conheço. A Wikipedia em inglês tb tende a ser mais completa e é uma referência satisfatória para muitos casos. Vou tentar encontrar mais links em português. E talvez escreva alguns posts em inglês também.

    A verdade é que os links são um extra, ou uma referência num estilo não-acadêmico. Quase sempre são dispensáveis.

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