"Há uma quantidade infinita de esperança no universo... mas não para nós" - Franz Kafka
Mas hoje despertei após uma noite de sonhos inquietantes sentindo as costas tão duras que pareciam revestidas de metal. Abri uma página de notícias na internet e a realidade me jogou na cara que mandaram cancelar a esperança. Mesmo com todas as manifestações populares, o presidente da câmara dos deputados, o terceiro na sucessão presidencial, esfrega na cara do contribuinte que não está nem aí para moralidade, para o uso responsável do dinheiro público e usa um jato da Força Aérea Brasileira para ir de Natal ao Rio de Janeiro com família e amigos assistir à final da Copa da Confederações 2013.
Após a denúncia da imprensa, e unicamente porque a farra se tornou pública, o deputado Henrique Alves declara que irá ressarcir o contribuinte com o valor das passagens. Posso imaginar como será a devolução: pelo preço da passagem promocional mais barata entre Natal e Rio de Janeiro em baixa temporada e paga com muita antecedência. Ou alguém imagina que será o custo de deslocamento do jato para Natal depois Rio, de volta a Natal e de volta para onde o jato estava, já incluindo o salário do piloto e tripulação. Henrique Alves tenta ainda justificar a viagem como se fosse para uma suposta reunião de trabalho no Rio de Janeiro no sábado. Na mais surpreendente das coincidências, a reunião aconteceu na véspera do jogo que foi assistir. Como já ia mesmo, uma carona não pareceu ser um problema.
Essencialmente, Henrique Alves está colocando cada contribuinte de quatro e metendo sem lubrificante. Está mostrando pra quem quiser que o Brasil do privilégio, do "manda quem pode, obedece quem tem juízo" continua sem qualquer tentativa de acobertamento. Não houve equívoco ou descuido. Não foi erro inocente. Houve claro e deliberado planejamento para usufruir do dinheiro público para seu prazer pessoal. Foi a resposta do presidente do congresso às manifestações. Com a crueldade adicional da exibição pública, por seus amigos e familiares, de fotos em redes sociais exibindo publicamente a felicidade de estar assistindo ao jogo sem pagar a passagem.
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Cidadão brasileiro esperando a sua vez. |
Se alguma punição ao deputado irá acontecer eu não sei, mas poucos acreditam que vai. O deputado Henrique Alves só o fez porque sabia que nada aconteceria. Sabia que não teria seu pedido negado ou questionado. Estava plenamente consciente do ato, do seu poder de pedir e ser atendido no mais absurdo dos pedidos. Quem recebeu o pedido não o contestou. Quem atendeu ao pedido não contestou. Quem pilotou o avião e viu família e amigos do deputado entrando obedeceu as ordens cegamente. Nenhum dos funcionários que souberam do fato denunciou publicamente o acontecimento.
Num mundo ideal, o deputado seria forçado a renunciar da presidência e de seu mandato (por vontade própria, nem no mundo ideal) e sua carreira política viraria história a ser esquecida. Mas sou pragmático e vou dar algumas sugestões, ainda que utópicas:
1 - O povo sair às ruas e pedir a renúncia de Henrique Alves. Entendo se não rolar porque os manifestantes já estão cansados. Mas poderia ser uma renovação de pauta.
2 - A presidenta pedir a renúncia de Henrique Alves. "Aí seria interferência do Executivo no Legislativo!", gritariam os puristas. Mas o Executivo já controla o legislativo e seria por um bem maior. Como provavelmente um pedido não daria certo, teria de ser uma chantagem do tipo "o mandato ou os cargos ocupados pelo PMDB até o milésimo escalão do Executivo Federal".
3 - Os outros deputados abrirem processo de cassação contra Henrique Alves. O governo teria de dar algum apoio e poderia ser uma boa oportunidade da presidenta ganhar popularidade.
Todas são possibilidades teóricas. O que desanima é que será necessário um suplente assumir a vaga e um novo presidente do congresso ser eleito. A sensação de que o ciclo continua é inevitável. Idéias como guilhotina vêm à cabeça (não resisti). Reforma política com aplicação só em 2016 deixa qualquer um sem esperança. Fazer o quê, então?
É preciso concentrar esforços. Sonhar que um dia teremos uma população educada o suficiente para achar que obedecer quem é indicado/eleito é completamente irracional. Sonhar com um dia em que representação política não será uma profissão com aposentadoria especial, mas apenas a dedicação temporária de um cidadão para representar outros pelo bem comum.
A educação no Brasil está melhorando e deve continuar a melhorar. Mas vai demorar. Duas gerações, meio século, por baixo. Já o modo de representação política pode mudar quase instantaneamente. É preciso tirar o dinheiro da política. Possibilitar que o cidadão não-milionário e não vendido possa ser eleito. Financiar as campanhas políticas exclusivamente com o dinheiro público. Vai custar um bilhão? Dez bilhões? É uma conta muito mais barata para o contribuinte que ter representantes corruptos fantoches de empresas e do 1% mais rico.
Se não der certo, o Brasil tem aço suficiente pra muita guilhotina.