E se fosse você a pessoa surrada, nua e presa a um poste para humilhação pública? Os defensores da moral preto e branco diriam que seria uma situação impossível: não são ladrões e não fazem coisas erradas para merecer tal castigo. Alguns com essa moral de certezas chegariam a dizer que mereceriam se realmente fossem bandidos. Especialmente porque seria uma possibilidade hipotética, claro. E ambos concordam que quem chamam de marginal, mereceu o castigo.
Há outras categorias de moralismo. Há quem
discorde do tratamento dos justiceiros neste caso, mas, se o acorrentado fosse
um pedófilo ou estuprador, diriam que mereceria ainda mais. Há ainda quem
discorde da justiça das ruas, mas acha que, seguido o processo legal, o
homicida, o estuprador e o pedófilo deveriam morrer. Civilizadamente e com a
aprovação do Estado. Uma variação menos extrema seria a prisão perpétua. Poucos
concordam que 30 anos de prisão para os piores crimes é suficiente. Ainda menos
suficientes são os que repudiam e se comovem com o adolescente espancado e amarrado
ao poste.
Essas categorias ilustram como o
bom-senso-comum prega a punição rígida, às vezes apenas para crimes violentos,
às vezes até para o ladrão de hospital, que não foi violento. O desejo de punição
severa, dolorosa aumenta com a indignação, com a violência, se o crime foi de
natureza sexual, se foi contra pessoas indefesas e ou se houve tortura.
Mas qual o apelo da punição severa, tortura e
até morte para alguns criminosos? Diversos, mas escolho um: a possibilidade de escolha.
O pressuposto de que quem comete o crime sempre poderia escolher não cometer,
mas, por ter decidido ir em frente, merece alguma punição.
Exceções à punição mais severa são fáceis de
descartar: o que rouba para comer em situação de desespero e o que apresenta
problema mental grave e não é capaz de distinguir entre o certo e errado, entre
real e fantasia. Os outros desviantes são vistos num quase contínuo pelo
sistema judicial. E, para quase todos, assume-se que a escolha sempre é
possível. Outra possível exceção, esta do bom-senso-comum, é a de que os
justiceiros também não teriam escolha ao espancar e humilhar um adolescente.
Eles estariam, afinal, protegendo a comunidade e se excederam.
Liberdade de escolha
A possibilidade de escolha entre legal e
ilegal, entre moral e imoral, justo ou injusto é a premissa essencial para a
noção de que seres humanos possuem livre arbítrio. Sem entrar em detalhes de
definição, o livre-arbítrio a que me refiro é o que supõe que qualquer pessoa
poderia ter tomado uma decisão diferente da que, de fato, tomou, ainda que
tenha sido fortemente influenciada. Exemplo: você está solteiro e encontra a
Camila Pitanga bebendo um suco de laranja no bar do aeroporto. Conversam, ela não
resiste ao seu charme e o resultado é o esperado: ambos perdem o vôo. Seguem
para o hotel mais próximo trocando amassos de ruborizar o motorista de táxi com
30 anos de praça e que já viu de tudo. Na hora do check-in, você pode: 1) pedir
um só quarto e ter a noite dos seus sonhos; ou 2) pedir quartos separados e
despachar a Camila Pitanga porque precisa acordar cedo, o que é mentira. Diz
que foi ótimo conhecê-la e que a noite de sexo selvagem fica pra próxima.
Acreditar em livre arbítrio é acreditar que a segunda opção é possível.
Livre arbítrio vale tanto para escolhas
difíceis como as ordinárias: terminar o casamento de 20 anos ou escolher entre
sorvete de pistache ou chocolate belga. Nessas, ou em qualquer outra situação,
a escolha pode ser qualquer uma entre as possíveis, e o indivíduo, não estando
em situação como a de ter uma arma apontada para a cabeça, supostamente, faz sua escolha livremente.
Escolha ex
nihilo?
Ainda que você não acredite em alma, você não
é um humano que tem um cérebro. Você é o seu cérebro. Se seu cérebro sofre
dano,
é alterado por drogas, ou é afetado por um tumor, sua cognição e comportamento se
modificam. Decisões que não seguiriam seu padrão são tomadas, i.e., você deixa
de ser quem tipicamente era. Exemplo típico é a doença Alzheimer. Pessoas
afetadas exibem comportamento errático e até agressivo. Mas é um caso em que,
tipicamente, não se reconhece culpabilidade moral, liberdade de escolha,
livre-arbítrio. Outras doenças mentais (cerebrais) também têm, parcialmente, o
status da perda de autonomia: vício em álcool, drogas e jogo, depressão. Mas como
são tratáveis e podem se estabilizar, atribui-se falha de caráter, pouca força
de vontade ou preguiça ao indivíduo que não supera essas condições,
especialmente quando ele recusa ajuda ou não continua o tratamento.
No entanto, tanto o comportamento do alcoólico
quanto da pessoa afetada pela doença de Alzheimer são causados pelo cérebro. No
primeiro caso por uma cadeia de eventos que incluem genética, desenvolvimento
cerebral e ambiente. No segundo caso, uma doença que degrada o cérebro. E qual
seria a diferença entre os dois cérebros, além da doença? Apenas a genética?
Apenas o ambiente? Na verdade, ambos fatores para ambos os casos. Qual seria,
então, a culpabilidade moral que alguém pode ter por herdar um conjunto
desfavorável de genes, ter crescido num ambiente não privilegiado ou ter pais
abusivos?
O alcoólico, como qualquer outra pessoa, não
escolheu sua genética, ambiente, história. Não escolheu, portanto, o estado do
seu cérebro que o tornou um alcoólico. Ainda assim, supostamente pode escolher
livremente controlar seus impulsos, largar a dependência. Também a pessoa com
Alzheimer não teve escolha em sua genética, ambiente, história. Mas, por ter
uma doença que afeta degrada seu cérebro, teria passe livre em seu
livre-arbítrio?
Em outros termos: se o livre arbítrio é
reduzido a um cérebro saudável, normal, seria esperado que condições ou doenças
que afetam o cérebro interferissem com livre arbítrio. Acidentes vasculares
cerebrais, meningite e deficiência intelectual diminuiriam ou eliminariam a
possibilidade de livre arbítrio. Mas, mesmo assumindo que livre arbítrio é
possível, essa é uma realidade que até o bom-senso-comum ou o cristianismo reconhece
ser falsa. Apenas apelando para um algo mais, fora do cérebro, o livre arbítrio
poderia existir.
A
conveniência do Livre Arbítrio
A noção de que o criminoso ou o pobre sempre
têm escolha é a mais cruel defesa do livre arbítrio. Ignora-se que a maioria
dos que nascem na pobreza, vive e morre nela. Idolatram-se as exceções que
tentam provar que tudo é possível: basta querer, correr atrás, ter força de
vontade. O menino pobre, arrimo de família que virou ministro do Supremo. O
camelô que construiu um império. Mas e o menino pobre que virou traficante? Ou
o que morreu antes dos 20, executado pelo traficante que o viciou? Ou o que
aprendeu a ler e escrever e teve, no máximo, um emprego de ascensorista por
toda a vida?
Se força de vontade fosse o único fator de ascensão social, a
conclusão absurda é que força de vontade ocorre com maior freqüência entre
privilegiados do que pobres. Ou, talvez, e misteriosamente, só existe para um
grupo seleto de pobres. Ambos, argumentos convenientes para manter o status
quo e relinchar diariamente que as bolsas do governo só servem para
sustentar vagabundo que fica tendo filho e que cota para negro é discriminação
também.
Novamente, e se fosse você que tivesse
nascido na pobreza e não existisse bolsa família, nem cota racial para tentar
ser o primeiro a estudar além do ensino básico? Você poderia realmente dizer
que só força de vontade seria suficiente para uma vida melhor?
Desesperador ou Libertador?
Se o livre arbítrio não existe, se não é
possível escolher sem amarras, como é possível viver, ter vontade de obter
sucesso e reconhecimento, amar e ter prazer? Se meu esforço para suceder ou
falhar foi determinado antes que eu nascesse, ou é completamente imprevisível,
por que tomar decisões? Por que se importar com a surra e humilhação de um
adolescente desprivilegiado? Ou com qualquer outro evento na vida de qualquer
pessoa?
Aceitar a ausência de livre arbítrio não
significa o fim da felicidade, de tomar decisões boas ou ruins e nem de sentir
prazer. Significa que o futuro é um mistério. Tentamos reduzir a realidade para
conseguir prever a chuva ou a seca, a progressão de uma doença, as novas gripes
que se espalham a cada inverno, a economia (com a economia não dá certo). Significa
também que seus erros passados não poderiam ter acontecido de outra forma. Ou,
ainda, que o mérito pessoal de qualquer pessoa, com ou sem esforço, é resultado
apenas de circunstâncias favoráveis. Significa que a sua sorte ou falta de
sorte não é diferente daquela de nenhuma outra pessoa. E que a crueldade, que
existe no caso do desejo de vingança e justiça, poderia ser eliminada se o
exercício de se colocar no lugar do outro assumisse a impossibilidade do livre
arbítrio para qualquer um, mesmo nos piores casos.
O rapaz amarrado ao poste poderia ser
qualquer outro ser humano. Seus genes, sua vida de pobreza, a proximidade com o
crime, a falta de opções, a oportunidade e o azar de ser encontrado por
justiceiros não poderiam ser evitados. Ainda assim é perfeitamente normal viver
assumindo o livre arbítrio e condenar a crueldade de justiceiros ou querer
punição para criminosos. Haverá um dia que entenderemos que, mesmo imprevisível,
o universo e nossas vidas têm um futuro determinístico? Provavelmente não. Mas
o efeito de suspender brevemente a ilusão de controle de nossas vidas nos
aproxima daqueles que estão em situações piores que a nossa. Com sorte, podemos
ter até compaixão.